Falar sobre novas hermenêuticas envolve a necessidade de conhecimento sobre alguns aspectos da perspectiva política e cultural global que norteia a pós-modernidade. Dentre esses, destaca-se a influência do neomarxismo ou pós-marxismo, principalmente sob as bases teóricas e propostas de Antonio Gramsci (1891-1937), Louis Althusser (1918-1990), da Escola de Frankfurt,[1] Ernesto Laclau (1935-2014) e Chantal Mouffe (1943- ).[2] Essa nova perspectiva produziu novos oprimidos, novos inimigos, novas lutas, novas utopias, novos paraísos, novas escatologias, novas hermenêuticas e novas teologias.
As novas hermenêuticas e as novas teologias têm, entre outros objetivos: (a) Desconstruir o texto; (b) Suspeitar do autor; (c) Negar/relativizar a inspiração e a inerrância das Escrituras; (d) politizar/ideologizar a teologia. Diante disso, a teologia ortodoxa é acusada de ser fundamentalista (sentido pejorativo), totalitarista, colonialista, capitalista, heteronormativa, patriarcal, machista, europeia e opressora.
A palavra “hermenêutica” tem sua origem no verbo grego ἑρμηνεύειν (hermēneuein), que significa “interpretar” ou “traduzir”. O termo está relacionado ao deus grego Hermes, que era considerado o mensageiro dos deuses e o deus da comunicação, da eloquência e da interpretação. Hermes era frequentemente associado à transmissão de mensagens e à interpretação de significados.
A partir dessa raiz, a hermenêutica se desenvolveu como uma disciplina que estuda os princípios e métodos de interpretação de textos, especialmente aqueles que possuem significados profundos ou complexos, como as Escrituras Sagradas. A hermenêutica, portanto, envolve a busca pela compreensão do significado e da intenção do autor, considerando o contexto histórico, cultural e linguístico em que o texto foi escrito.
Os pressupostos do intérprete cristão ortodoxo em relação à Bíblia envolvem a crença na sua inspiração, inerrância e infalibilidade.
1 – Hermenêutica Modernidade e Pós-Modernidade
A modernidade e a pós-modernidade trouxe consigo grandes desafios para a ortodoxia cristã, e isso envolve a hermenêutica. O impacto das perspectivas modernas e pós-modernas na hermenêutica bíblica resultou no seguinte:[3]
– Criticismo textual: Como bem resumiu Paul Ricoeur, a modernidade fez com que os métodos críticos emprestados das ciências seculares da história (alta crítica) e da filologia (baixa crítica) fossem aplicados à Bíblia. Dessa forma: “Assim, toda Bíblia é tratada como a Ilíada ou os pré-socráticos, a letra é dessacralizada, é feita parecer com as palavras de humanos”.[4]
– Sincronia: Enquanto a interpretação do período moderno era basicamente diacrônica, onde se buscava entender o processo histórico da formação dos textos bíblicos, para então analisar o sentido dos mesmos, na pós-modernidade ela tornou-se sincrônica, ou seja, preocupada em entender o texto à luz de si próprio e da interação com o leitor. A interpretação pós-moderna não se preocupa mais com questões do tipo: autoria, data, local e razões de ter escrito, e nem com o processo histórico que conduziu à formação do texto.
– Pluralidade de interpretações e sentidos: A intenção do autor se tornar impossível de ser determinada, e isso sob a alegação da distância cultural, temporal e linguística entre o mesmo e nós. Dessa forma, um mesmo texto permite novas e diferentes interpretações, e todas igualmente válidas, não necessitando ter relação com o sentido original ou com a intenção autoral. A pluralidade de interpretações envolve assim a pluralidade de “sentidos”. Com a morte do autor, morre com ele a sua intenção e a possibilidade de um sentido único.
– Retorno à alegorese: A ênfase na multiplicidade de sentidos fomenta a interpretação alegórica em detrimento do sentido literal do texto bíblico.
– Deslocamento de sentido: No contexto da Reforma Protestante a ênfase hermenêutica estava no autor e em sua intenção. No período moderno, essa ênfase se deslocou para o texto, sua formação e sua história, usando para isso os métodos críticos. Na atualidade a ênfase se deslocou para o leitor e o seu contexto, onde a intenção autoral e processo de formação do texto são rejeitados.
– Suspeita: A hermenêutica da suspeita é uma abordagem interpretativa que busca questionar e criticar as interpretações tradicionais e as suposições subjacentes a textos, discursos e práticas. Essa hermenêutica é caracterizada por uma atitude crítica em relação ao que é apresentado como verdade, especialmente em contextos onde há relações de poder, ideologia ou opressão. Aqui estão alguns aspectos importantes da hermenêutica da suspeita: (a) Crítica das Narrativas Dominantes. A hermenêutica da suspeita desafia as narrativas e interpretações que são amplamente aceitas, questionando quem se beneficia dessas interpretações e quais vozes podem estar ausentes ou silenciadas; (b) Desconstrução de significados. Essa abordagem busca desconstruir os significados atribuídos a textos e discursos, revelando camadas de significação que podem ter sido ignoradas ou distorcidas. Isso envolve a análise das intenções do autor, do contexto histórico e das implicações sociais. A hermenêutica da suspeita é frequentemente associada a pensadores como Karl Marx, Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche. Cada um desses teóricos, em suas respectivas áreas, questionou as verdades estabelecidas e explorou as motivações ocultas por trás das ações e crenças humanas. Na teologia, a hermenêutica da suspeita é usada para questionar a intenção autoral e as interpretações tradicionais da Bíblia e da doutrina, especialmente aquelas que podem perpetuar injustiças ou opressões. Isso pode incluir uma análise crítica de como as interpretações têm sido usadas para justificar práticas discriminatórias.
– Desconstrução: O desconstrucionismo, cujo o pai filosófico é o francês Jacques Derrida, afirma, entre outras coisas, que todos os textos são compostos de signos arbitrários, e por isso são arbitrários eles mesmos, ambíguos, impenetráveis e sem autor. Os textos são fluídos e estão sempre em movimento, sem sentido fixo ou determinado, mantendo apenas uma tênue e mutante relação com a realidade objetiva.
2 – Hermenêutica e Contexto
Como vimos, a ênfase atual da hermenêutica repousa principalmente no leitor e seu contexto. É em razão disso que podemos falar de “hermenêutica contextual”.
“Hermenêutica contextual” é um termo derivado de um artigo escrito pelo pai da Teologia da Missão Integral (TMI), René Padilla, em 1980 (publicado no Brasil em 1984).[5]
Conforme análise de Zabatiero, uma mudança na interpretação bíblica proposta pela hermenêutica contextual envolve:
[…] A experiência da realidade deve ser crítica. […] No vocabulário de Paulo freire, essa nova experiência da realidade se denomina de conscientização. […] Aplicar a suspeita ideológica a toda superestrutura e, em particular, à teologia. O objetivo é desmascarar as fontes e condições de manutenção da opressão e da injustiça social, possibilitando a tomada de uma consciência crítica e libertadora.[6]
Essa descrição da tarefa hermenêutica contextual ajudou a constituir a epistemologia da Teologia da Libertação (e das demais teologias da libertação), o que provocou uma reviravolta no modo de fazer teologia, e isso mediante um abandono da mediação filosófica normativa do tomismo no catolicismo, e pela adoção de um instrumental sociológico (marxista) como ferramenta metodológica para a exegese e para a teologia.[7]
O problema hermenêutico está associado ao problema teológico ou de princípio. Tal problema incorre em colocar os pobres no lugar de Cristo. Enquanto a “virada antropológica” da teologia moderna europeia centrava-se nos problemas do “homem moderno”, na américa latina o centro dessa teologia antropocêntrica seria o “homem pobre”, com a sua máxima na opção pelos pobres: “em algum momento desta virada a coisa começou a degringolar: teólogos (e pastores) começaram a se confundir com sociólogos (e militantes políticos), e passaram a exaltar tanto o anthropos, que este, afinal, acabou sendo entronizado no lugar do próprio Deus!”.[8]
A “hermenêutica da libertação” fez com que em vez do ouvinte e leitor das Escrituras se submetesse ao juízo da Palavra, seria esta que deveria ser submetida aos seus juízos e interesses preconcebidos, gerando assim uma típica instrumentalização da fé (ou ideologização), culminando num tipo de utilitarismo bíblico: “A Palavra de Deus viria apenas depois, como função subalterna à chamada “realidade”, “vida” ou “sinal dos tempos”. Se é assim, a primazia prática ou mesmo pragmática do “ver” toma a dianteira sobre a primazia teórica ou hermenêutica do “julgar”. Ora, a Palavra divina não pode jamais ser submetida à realidade humana, nem, por conseguinte, pode a Igreja ser mais inspirada pelo “espírito do tempo” do que pelo Espírito de Deus.[9]
O contexto e os seus instrumentos ideológicos passaram a interpretar e julgar as Escrituras (eisegese), em vez de serem interpretados e julgados pelas Escrituras (exegese).
3 – Hermenêuticas Ideologizadas
A hermenêutica bíblica se tornou nos dias atuais uma ferramenta a serviço do pensamento e lutas ideológicas. Vejamos algumas propostas hermenêuticas ideologizadas, fundamentadas no politicamente correto, e onde a destruição dos valores cristãos e ataques à inspiração das Escrituras são comuns.
– Hermenêutica da Libertação. Essa hermenêutica é representada nos contexto católico romano pela Teologia da Libertação,[10] e no contexto evangélico/protestante pela Teologia da Missão Integral,[11] com algumas poucas diferenças em termos de pressupostos. Trata-se de uma hermenêutica/teologia centrada no pobre.
A Teologia da Libertação[12] surgiu para se contrapor ao que se designa como teologias “tradicionais”, acusando essas de serem gestadas no contexto europeu e norte-americano, com formulações que não teriam partido do cristianismo primitivo, e que sofreram a influência do pensamento grego/helênico, precisando dessa forma ser superada.[13]
As raízes históricas da TdL, segundo muitos dos seus defensores, remontam ao século XVI, quando o padre espanhol Bartolomé de Las Casas defendeu os povos nativos dos Conquistadores, criando uma ligação inseparável entre salvação e a justiça social.[14] Para Gutiérrez: “A teologia da libertação tem suas raízes em uma militância revolucionária”.[15]
Em sua análise sobre as Teologias Socialistas,[16] Paul Enns enumera alguns fatores que contribuíram para o surgimento da TdL. São eles: (a) a dependência das teses filosóficas de Immanuel Kant (que enfatizava a prioridade da razão humana à parte da revelação divina); (b) o pensamento de Georg W. F. Hegel (que via a transformação da sociedade através de tese-antítese-síntese); (c) particularmente Karl Marx (através da luta de classes com suas distinções e barreira); (d) e a teologia da esperança de Jürgen Moltmann, que defende a revolução como um meio de alcançar esperança para o futuro.[17]
Três escolas ganham destaque como promotoras da TdL: a escola Católica, a escola Protestante e a escola DEI (Departamento Ecumênico de Investigações).[18]
A Teologia da Missão Integral (TMI) é uma variante da Teologia da Libertação (TdL), visto a sua ênfase numa “teologia contextual”, na pobreza e opressão econômica capitalista, exemplificada principalmente pelo modelo de crescimento econômico dos Estados Unidos,[19] no ecumenismo,[20] no alinhamento com o pensamento político-educacional de Paulo Freire (educador socialista),[21] na ideia de uma “preferência” ou “preocupação especial” de Jesus em relação aos pobres, temas norteadores da Teologia da Libertação,[22] e nas declarações abertas de alguns dos seus defensores acerca da leitura da realidade social e política feita pelas “lentes” ideológicas do marxismo.[23]
Historicamente, a TMI surge no mesmo período do nascimento da Teologia da Libertação, ou seja, durante os anos 60 e início da década de 1970. Conforme Paddila, um evento significativo deste despertar aconteceu no 1º Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE 1), que foi realizado em Bogotá, Colômbia, em novembro de 1969, onde Samuel Escobar, membro da equipe de obreiros da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE), falou sobre “A responsabilidade social da igreja”.[24] Para Sanches, o Movimento de Missão Integral teve sua origem, de forma mais precisa, no contexto da FTL – Fraternidade Teológica Latino-americana (criada em 1970 na cidade de Cochabamba, Bolívia).[25] No caso da TdL, um primeiro esboço da mesma foi apresentado por Gustavo Gutiérrez, num breve ensaio intitulado Apuntes para uma teologia de la liberación, em Lima, no ano de 1969.[26]
Ao falar sobre alguns aspectos históricos do progressismo evangélico, e mais especificamente sobre a Confederação Evangélica Brasileira (CEB), Ariovaldo Ramos e Nilza Zacarias afirma que:
Jovens crentes, contrariando as determinações de seus pastores, começaram a expressar sua fé em praças públicas. Não havia conteúdo ideológico, mas havia contestação. E pela contestação veio a ideologia, fomentada no ambiente de censura. Daí nascem organizações paraeclesiásticas, fazendo a ponte entre a cultura e a igreja. São esses grupos que assumem os fragmentos das teologias libertadoras que os evangélicos discutiam antes do golpe militar, e que foram transferidas para o arraial católico. Dessa discussão surge a base para a Teologia da Missão Integral, uma variante protestante da Teologia da Libertação.[27]
Sim, a Teologia da Missão Integral e a Teologia da Libertação estão estreitamente ligadas ao progressismo político e teológico.
– Hermenêutica Feminista: Considera-se que o movimento feminista bebeu da fonte das revoluções burguesas do século XVIII: Iluminismo, Revolução Francesa, Revolução Gloriosa e Independência Americana. Com contornos anarquistas e individualistas, Mary Wollstonecraft (1759-1797) publicou, em 1792, o livro inaugural do movimento feminista: Reivindicação dos direitos da mulher. A obra aborda questões sobre direitos humanos, ideais republicanos e as disputas sobre a condição jurídica da mulher enquanto esposa e a educação dada a ela.[28]
Na condição de instrumento de desconstrução da teologia tradicional e ortodoxa (que consideram uma teologia patriarcal e androcêntrica), a Teologia Feminista afirma ser uma voz contra-hegemônica, ao mesmo tempo em que se presta ao serviço da hegemonia socialista pós-marxista.
Na mesma linha das outras teologias de libertação, a Teologia Feminista equivocadamente enxerga como causa primária das desigualdades e opressões as estruturas sociais, e não a maldade, a ganância, a soberba, o ódio, a inveja, o ressentimento e tantos outros males que resultam do pecado (i.e. da Queda), realidade presente igualmente na vida e no discurso daqueles que tentam implantar um paraíso socialista na terra por meio de cancelamentos, da manipulação da linguagem e das demais estratégias usadas na guerra cultural.
Em seu livro “Introdução ao Antigo Testamento”, Alice L. Laffey declara que:
Já que o Antigo Testamento foi escrito entre o séc. X e o séc. II a.C., e já que suas tradições orais são até anteriores, já que aquele período na antiga história israelita era sem dúvida patriarcal (basta olhar os textos para reconhecer que é uma história de homens que é narrada e que as mulheres são relegadas a funções de serviço), qualquer crítica histórica dos textos precisa explicitar sua tendência patriarcal. Esta é uma função da interpretação feminista. […] A reinterpretação é necessária porque a maioria dos exegetas são homens.[29]
A hermenêutica exegética feminista:[30] “[…] situa-se na interseção de exegese e feminismo”.[31] Nesse sentido, segundo essa perspectiva, a teologia cristã feminista e a interpretação bíblica estariam no processo de redescobrimento de que o evangelho cristão não poderia ser proclamado se não houvesse uma recordação da ação das discípulas: “Esta reconstrução da história cristã primitiva como história das mulheres e da teologia bíblico-histórica como teologia feminista, pressupõe análise crítica histórica e teológica e também o desenvolvimento de uma hermenêutica histórico-bíblica feminista”.[32] A teoria feminista afirma que: “todos os textos são produtos de cultura e história patriarcal androcêntrica”.[33] E isso inclui a Bíblia. Dessa forma, por exemplo, em seu livro “As Sagradas de Asherah e YHWH”, um dos pressupostos utilizados pela autora envolve a possibilidade de seletividade nas narrativas, tendo como um dos fatores a ideologia do(s) grupo(s) que redigem o texto, com destaque para “a memória manipulada” e a “lembrança encobridora”.[34] E, citando Fiorenza, escreve: “a hermenêutica da suspeita não toma ao pé da letra o texto kyriocêntrico e sua pretensão de autoridade divina. Em vez disso, analisa-o em relação às funções ideológicas que ele desempenha no interesse da dominação”.[35] A Bíblia é assim tratada como qualquer outro livro, não sendo considerada como divinamente e plenamente inspirada, inerrante e infalível, o que é próprio de posturas teológicas liberais e progressistas.
– Hermenêutica Queer: O movimento queer é um movimento social e político que busca desafiar e desconstruir as normas tradicionais de gênero e sexualidade. Ele se desenvolveu a partir das lutas pelos direitos LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexos e assexuais) e visa promover a aceitação e a visibilidade de identidades que não se encaixam nas categorias heteronormativas. A Hermenêutica Queer é uma abordagem teórica e interpretativa que se concentra na análise de textos, especialmente textos literários e religiosos, a partir de uma perspectiva Queer. Essa abordagem busca desafiar e desconstruir as normas e categorias tradicionais de gênero e sexualidade, explorando como essas categorias influenciam a interpretação e a compreensão dos textos. Dentro do espectro das teologias da libertação, a Hermenêutica Queer também enfatiza a importância do contexto histórico e cultural na interpretação de textos. Isso inclui a consideração de como as normas de gênero e sexualidade variam ao longo do tempo e em diferentes culturas. No contexto da teologia, a Hermenêutica Queer pode ser usada para reinterpretar textos bíblicos e tradições religiosas, desafiando leituras que perpetuam discriminação ou exclusão. Essa abordagem busca encontrar maneiras de entender a fé que sejam inclusivas e afirmativas para todas as identidades:
Longe de levar pessoas ao niilismo, a Teologia Queer levou as teologias contextuais a novos limites e alternativas de pensamento, sexuais e também políticos. […][…] é necessário facilitarmos a saída de Deus do armário através de um processo de queerização teológica. Por queerização teológica entende-se o questionamento deliberado da experiência e pensamentos heterossexuais que têm moldado nossa compreensão de teologia, do papel do teólogo e da hermenêutica. […] Para nos libertamos teologicamente do binarismo, há mais opções do que apenas teologia lésbica e gay. A Teologia Queer é uma categoria mais ampla cuja intenção permanente é a instabilidade e, como o libertino na cena sadeana, seu objetivo é não refletir nenhum projeto normativo ao permitir que um processo criativo a partir de interações de ordem diferente aconteça.[36]
Do ponto de vista hermenêutico:
Quais são os escândalos das próteses teológicas na hermenêutica queer? A resposta é: a linguagem teológica do Outro queer. Esta linguagem estrangeira pode impulsionar as teologias sexuais a novos saltos de indecência ao trilhar a estrada (de metodologias) que é mais estranha às opções hermenêuticas cristãs”.[37]
Esses novos círculos e fontes hermenêuticas mostraria como encontrar Deus nos “becos escuros”.[38] A hermenêutica é vista aqui como portadora de uma: “ampla gama de possibilidades para uma abordagem desde a teoria queer”.[39]
Como parte da perspectiva hermenêutica contextual, seus defensores afirmam que: “Sempre interpretamos a partir de nosso contexto único e particular de vida que, determina a maneira como ouvimos a Bíblia”.[40] Mais uma vez, a primazia metodológica é invertida, ou seja, não é a Bíblia que nos faz entender (interpretar) o contexto, mas o contexto é que faz com que a Bíblia seja por nós entendida (interpretada).
– Hermenêutica Negra: A Teologia Negra é um movimento teológico que emerge a partir das experiências e realidades dos povos africanos e afrodescendentes, especialmente no contexto das lutas contra a opressão, racismo e injustiça social. Esse movimento busca reinterpretar a fé cristã à luz das experiências históricas e culturais das comunidades negras, enfatizando a dignidade, a resistência e a esperança.
No prefácio da obra Teologia Negra, de J. H. Cone, lemos: “Teologia é uma linguagem contextual, isto é, definida pela condição do ser humano que lhe dá vida”.[41] A Teologia Negra, assim como as demais aqui citadas, é uma teologia contextual que se baseia numa hermenêutica contextual. Apesar de declarar que “a teologia negra é teologia bíblica”,[42] Cone afirma que:
É certo que a Bíblia não é a revelação de Deus; Jesus que é. […] Deus não foi o autor da Bíblia […]. Para essas pessoas oprimidas, pouco importa quem foi o autor da Bíblia; o que importa é se ela pode ou não servir como arma contra os opressores. […] Aqui está a chave para o significado da inspiração bíblica. A Bíblia é inspiração: ao lê-la, a comunidade pode encontrar o Jesus ressuscitado e, assim, se inspirar para arriscar tudo pela liberdade terrena”.[43]
Em outro lugar, Cone afirma que: “Por outro lado, a teologia negra não tem que negligenciar a revelação bíblica. Isso quer dizer que a teologia negra não deve criar uma norma que ignore o encontro da comunidade negra com a revelação de Deus”.[44] Afinal, a Bíblia é ou não é a revelação de Deus? Há muita ambiguidade presente na obra de Cone.
Nessa perspectiva teológica e hermenêutica: “A teologia negra deve se conscientizar de que o Jesus branco não tem lugar na comunidade negra e é nossa missão destruí-lo”.[45]
Na obra Teologia Feminista Negra, se entende que:
[…] as várias leituras feministas da Bíblia têm em comum o fato de terem ousado sair do caminho batido para iniciar uma nova hermenêutica. […] Por serem leituras contextuais da Bíblia, as feministas não fogem dos limites e possíveis riscos da instrumentalização da Bíblia para quem tenta esse tipo de abordagem”.[46]
Conclusão
Os ataques pós-modernos ao sentido e autoria do texto é na realidade um ataque às Escrituras. O alvo último e principal dessa rebelião hermenêutica é a Bíblia e o seu Autor.
Visto que o Livro não pôde ser destruído, busca-se destruir ou desconstruir toda a credibilidade e possibilidade de sentido e intenção autoral do Texto Sagrado. A morte do autor, é na realidade uma nova e frustrada tentativa filosófica/ideológica de declarar a “morte de Deus”.
Uma teologia bíblica fundamentada em métodos hermenêuticos comprovadamente válidos e em pressupostos ortodoxos combaterá (com palavras e obras) toda a sorte de opressão e ataques à dignidade humana, sem precisar diminuir o valor da Bíblia, suspeitar do seu autor, colocar em dúvidas a sua inspiração, transformá-la em “momento ou lugar segundo hermenêutico” e nem utilizá-la como mero instrumento (arma) de luta política e ideológica libertadora.
[1] A Escola de Frankfurt foi criada com a finalidade de destruir a cultura ocidental, atacando o capitalismo, a dimensão religiosa da vida e a tradição clássica. O marxismo original foi adaptado para que influenciasse o Ocidente e mudasse a cultura por meio das ideias e da linguagem, alterando os hábitos das pessoas (Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/ ).
[2]LAJE, Agustin; MARQUEZ, Nicolás. O livro negro da Nova Esquerda. Tradução de Jefferson Bombachim. Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2018. ITURRALDE, Cristián Rodrigo. A Escola de Frankfurt e o início da nova esquerda. Tradução de Thaís Nicolini. Campinas, SP: Vide Editorial, 2022. LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.
[3] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 199-201, 220-222.
[4] RICOEUR, Paul. Ensaios sobre a interpretação bíblica. Tradução de José Carlos Bento. São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 50,51.
[5] ZABATIERO, Julio. Hermenêutica contextual. São Paulo: Garimpo Editorial, 2017, p. 22.
[6] ZABATIERO, ibid., p. 24.
[7] ZABATIERO, ibid., p. 24,25.
[8] ADORNO, Leandro Rasera (Org.). A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação. Campinas, SP: Ecclesiae, 2023, p. 9-11.
[9] BOFF, Clodovis. O declínio atual da Igreja Católica. In: ADORNO, Leandro Rasera (Org.). A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação. Campinas, SP: Ecclesiae, 2023, p.24.
[10] GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. 2. Ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1976.
[11] PADILLA, C. René. Missão Integral: o reino de Deus e a igreja. Viçosa, MG: Editora Ultimado, 2014.
[12] Usaremos na sequência do texto a sigla TdL sempre que citarmos a Teologia da Libertação.
[13] CASTRO, André. Uma breve história da Teologia da Libertação protestante e suas implicações teológicas. São Paulo: Editora Recriar, 2022, p. 17.
[14] GRENZ; Stanley J.; OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. Tradução de Suzana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 252.
[15] GUTIÉRREZ, Gustavo. The power of the poor in history, trad. Robert R. Barr (Maryknoll, NY.: Orbis, 1983, 205 apud GRENZ; OLSON, ibid., p. 252
[16] O socialismo é uma ideologia que defende a construção de um novo mundo, materialmente confortável para toda a humanidade. Esse seria o objetivo final ou fim supremo de todo o esforço humano (John O’Donohue).
[17] ENNS, Paul. Manual de teologia Moody. São Paulo: Editora Batista Regular do Brasil, 2014, p. 723.
[18] CASTRO, ibid., p. 14,15.
[19] PADILLA, C. René. Missão integral: o reino de Deus e a igreja. Tradução de Emil Albert Sobottka e Wagner Guimarães. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014, p. 129, 151-153, 162-164, 167.
[20] PADILLA, C. René. O que é missão integral? Viçosa, MG: Ultimato, 2009, p. 129-132.
[21] CAPELLETI, Paulo. Encontros das teologias latino-americanas: análise histórico-teológica da teologia da missão integral versus teologia da libertação. São Paulo: Descoberta, 2019, p. 59-62.
[22] Ibid., p. 196-204.
[23] Disponível em: https://youtu.be/Li-akxnD5l4?si=0SqVRcLqqiQYA5qo
[24] PADILLA, ibid., p. 17,18.
[25] SANCHES, Regina Fernandes. Como fazer Teologia da Missão Integral. São Paulo: 2016, p. 18.
[26] MONDIN, ibid., p. 66.
[27] Candidatos Evangélicos: eleitorado em nome de Deus. Disponível em: https://diplomatique.org.br/candidatos-em-nome-de-deus/?fbclid=IwAR2ITBiGxW1Rv8CE1RTFc4gPmS7ymapsOcnmVI5GTGuZOEakDlyukxn2Kes, acesso em 15/04/2024.
[28] CAMPAGNOLO, Ana Caroline. Feminismo: perversão e subversão. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2019, p. 37,38.
[29] LAFFEY, Alice L. Introdução ao Antigo Testamento: perspectiva feminista. São Paulo: Paulus, 1994, p. 10,11.
[30] SCHOTTROFF, Luise; SCHROER, Silvia; WACKER, Marie-Theres. Exegese feminista: resultados de pesquisas bíblicas a partir da perspectiva de mulheres. São Leopoldo: Sinodal/EST; CEBI; São Paulo: ASTE, 2008.
[31] Um estudo amplo e ortodoxo sobre o feminismo pode ser encontrado em: CAMPAGNOLO, Ana Caroline. Feminismo: perversão e subversão. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2019.
[32] FIORENZA, Elisabeth S. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p. 11.
[33] Ibid., p. 12.
[34] MATOS, Sue’Hellen Monteiro. As sagradas de Asherah e YHWH: o sacerdócio feminino no templo de Jerusalém. São Paulo: Recriar, 2024, p. 17.
[35] Ibid., p. 19.
[36] ALTHAUS-REID, Marcella. Deus Queer. Rio de Janeiro: Metanoia; Novos Diaólogos, 2019, p. 19,49.
[37] Ibid., p. 55.
[38] Ibid., p. 59.
[39] MUSSKOPF, André Sidnei. Talar rosa: homossexuais e o ministério na igreja. São Leopoldo: Oikos, 2005, p. 187.
[40] WINK, Walter et all. Homossexualidade: perspectivas cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 144.
[41] CONE, James H. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020, p. 35.
[42] Ibid., p. 90.
[43] Ibid., p. 90-92.
[44] Ibid., p. 97.
[45] Ibid., p. 99.
[46] CALDEIRAS, Cleusa (org.). Teologia feminista negra: vozes que ecoam da África e da América Latina. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023, p. 198,199.
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