O ecumenismo esteve na pauta do Concílio Vaticano II em vários momentos. Um desses envolveu a tradução da Bíblia. Vejamos:
“É preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura. Por esta razão, a Igreja logo desde os seus começos fez sua aquela tradução grega antiquíssima do Antigo Testamento chamada dos Setenta; e sempre tem em grande apreço as outras traduções, quer orientais quer latinas, sobretudo a chamada Vulgata. Mas, visto que a palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados. Se porém, segundo a oportunidade e com a aprovação da autoridade da Igreja, essas traduções se fizerem em colaboração com os irmãos separados, poderão ser usadas por todos os cristãos”. (Concílio Vaticano II, Dei Verbum, n. 22, Roma, 18 de Novembro de 1965)
Observe o detalhe na citação acima: “traduções em colaboração com os irmãos separados”, ou seja, nós evangélicos/protestantes (os separados).
Foi neste sentido que o Vaticano (Igreja Católica Romana) firmou um acordo ecumênico de colaboração para tradução da Bíblia em 1968 com as United Bibles Societies (Sociedades Bíblicas Unidas), através do documento Guiding Principles for Interconfessional Cooperation in Translating the Bible (Princípios Orientadores para Cooperação Interconfessional na Tradução da Bíblia), acordo esse ratificado em 1987, através do documento Guidelines for Interconfessional Cooperation in Translating the Bible: The New Revised Edition Rome (Diretrizes para Cooperação Interconfessional na Tradução da Bíblia: A Nova Edição Revisada Roma). Por ocasião da reafirmação desse acordo, o Papa João Paulo II fez um pronunciamento parabenizando a decisão.
Desde então, as traduções do Novo Testamento das Bíblias católicas romanas e daquelas publicadas pelas afiliadas das Sociedades Bíblicas Unidas adotaram a edição crítica do Novo Testamento grego publicada pela United Bible Societies (atualmente se encontra em sua Quinta Edição), que tem como base principal dois manuscritos alexandrinos antigos (Códice Sinaítico e Códice Vaticano), aclamados por grande parte da “academia” como “os melhores manuscritos”, apesar dos inúmeros problemas em torno desses códices.
Esse texto grego se afasta em diversas partes do Textus Receptus, que é a base principal da tradução do Novo Testamento da Bíblia versão Almeida Revista e Corrigida (ARC), não considerando como parte dos originais algumas palavras e passagens do Novo Testamento, como é o caso de Marcos 16.9-20 e João 7.53 – 8.11 (dentre outras).
Apesar desse “ecumenismo textual”, a Nova Almeida Atualizada (NAA) e as versões católicas romanas divergem e se contradizem entre si nas notas de rodapé das Bíblias de estudo. Vamos citar aqui como exemplo, o caso dos comentários dessas versões sobre João 7.53 – 8.11 (a perícope da mulher adúltera):
– Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada: “Existe considerável dúvida de que esta história tenha feito parte do Evangelho original de João, uma vez que ela está ausente de todos os manuscritos mais antigos. Porém, não há nada nela indigno da sã doutrina. Parece melhor ver a história com o algo que provavelmente aconteceu durante o ministério de Jesus, mas que não fazia parte originalmente daquilo que João escreveu em seu Evangelho. Por isso, essa história não deveria ser considerada parte da Escritura nem ser usada como base para formular algum ponto de doutrina que não seja confirmado na Escritura”. (SBB, 2019, p. 1922).
Observe, que a nota de rodapé da Bíblia de Estudo NAA afirma categoricamente que “essa história não deveria ser considerada parte da Escritura”, ou seja, não deveria ser considerada inspirada ou canônica.
– A Bíblia de Jerusalém: “Esta perícope (7.53 – 8.11), omitida nos mais antigos documentos (mss, versões e Padres da igreja), colocada alhures por outros, deixa transparecer o estilo sinótico e não pode ser de são João. Poderia ser atribuída a são Lucas (cf. Lc 21.38). Sua canonicidade, seu caráter inspirado e seu valor histórico, no entanto, não sofrem contestação”. (Paulus, 1995, p. 2005)
Perceba a confusão feita por esses eruditos. Segundo eles, não foi João quem escreveu a história, deve ter sido Lucas, mas de alguma forma a passagem veio parar no Evangelho de João. Mesmo assim, ela deve ser considerada inspirada e canônica (a NAA diz que não deveria ser considerada parte da Escritura).
– Bíblia Sagrada Scribere Tradução Oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): “Este trecho, conhecido desde o início do cristianismo, não estava inicialmente no ev. De João; falta nos mss. mais antigos ou é inserido em outro lugar. Foi incorporado em João por volta do séc. 4º, e é reconhecido como canônico”. (Edições CNBB, 2023, p. 1562)
Assim como a Nova Almeida Atualizada e a Bíblia de Jerusalém, a tradução oficial da CNBB também afirma que não foi João quem escreveu essa passagem, e que ela deve ter sido incorporada a esse evangelho por volta do século 4º (mesmo assim ela deve ser considerada canônica).
– A Bíblia Paulinas (Novo Testamento): “O relato da mulher perdoada por Jesus não está presente nos mais antigos manuscritos gregos do Evangelho segundo João, nem nos manuscritos mais antigos das versões orientais. Alguns manuscritos trazem essa passagem no Evangelho segundo Lucas, após Lc 21.38. É possível, pois, que esse relato tenha passado por uma história própria, sendo posteriormente inserido no Evangelho segundo João. De fato, o estilo não é o joanino. Não obstante, nenhum desses fatores afeta sua canonicidade”. (Paulinas, 2015, p. 262)
A Bíblia Paulinas também afirma (conforme a Bíblia de Jerusalém e a Bíblia Scribere), que apesar de João não ter sido o autor original, e que esse relato foi inserido ao Evangelho de João posteriormente, ele deve ser considerado canônico.
– Bíblia do Peregrino: “É hoje opinião corrente que este relato é inserção posterior. A linguagem em parte não é de João; falta nos manuscritos antigos; alguns manuscritos o colocam depois de Lc 21.38. Contudo, o relato é canônico, ou seja, faz parte do NT inspirado, conserva a recordação de um episódio de Jesus e é uma joia literária e religiosa”. (Paulus, 2017, p. 2209).
Mais uma vez as versões católicas romanas concordam entre si (e com a Nova Almeida Atualizada), alegando a inserção posterior da perícope e a não autoria de João. Contudo, diferente da Nova Almeida Atualizada, afirmam que apesar de João não ter sido o autor original, a passagem deve ser considerada canônica e inspirada. Que confusão!
Vale destacar, que os “manuscritos mais antigos” citados nesses comentários, são os problemáticos Códice Sinaítico e Vaticano. Além disso, esta passagem bíblica está devidamente documentada em milhares de manuscritos bizantinos, que correspondem a 90-95% dos manuscritos gregos do Novo Testamento (seguidos pela Almeida Revista e Corrigida).
Como fica evidente, o “ecumenismo textual” do Vaticano (Igreja Católica Romana) com as Sociedades Bíblicas Unidas, ficou apenas na adoção do texto crítico de O Novo Testamento Grego. No demais, é pura divergência e contradição.
Na próxima postagem sobre o assunto, trataremos de Marcos 16.9-20.
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