O montanismo foi um movimento que surgiu na metade do século II, na pequena aldeia de Ardaban (ou Ardabau), fronteira entre as províncias romanas da Frígia e da Mísia, na Ásia Menor, nos tempos de Grato, procônsul da Ásia.[1] A designação de montanismo foi dada pelos opositores ao movimento, associando-o ao nome do seu iniciador e líder, Montano, que se declarava profeta e que afirmava ter uma mensagem de restauração para a Igreja, colocando-se assim como porta-voz do Espírito. Ao lado de Montano, associaram-se posteriormente Priscila (ou Prisca) e Maximila, que chegaram a profetizar que o fim do mundo estava próximo, chamando a atenção dos cristãos para reunirem-se nas cidades de Tímion e Pepuza, localizadas na Frígia, onde supostamente surgiria a Jerusalém celeste. Os montanistas nomearam-se Nova Revelação ou Nova Profecia.[2]

As opiniões sobre o movimento montanista se dividem entre historiadores e pesquisadores. O principal texto contra os montanistas foi escrito por Eusébio de Cesareia, considerado o pai da história da Igreja, que afirma:

Diz-se haver certa vila da Mísia, na Frígia, chamada Ardaba. Ali, dizem, um dos conversos recentes de nome Montano, quando Crato era procônsul na Ásia, tendo na alma excessivo desejo de assumir a liderança, dando ao adversário ocasião para atacá-lo. De modo que foi arrebatado no espírito, sendo levado a certo tipo de frenesi e êxtase irregular, delirando, falando e pronunciando coisas estranhas, e proclamando que era contrário às instituições que prevaleciam na Igreja, conforme transmitidas e mantidas em sucessão desde os primórdios. Mas quanto aos que aconteceu estarem presentes e ouvir esses oráculos espúrios, ficaram alguns indignados, censurando-o por estar sob influência de demônios e do espírito de engano e por estar apenas incitando distúrbios entre a multidão.[3]

Cirilo de Jerusalém, em suas Catequeses, faz uma dura crítica ao montanismo:

[…] estes montanistas se chamaram falsamente de cristãos. Eles estavam cheios de toda impiedade e crueldade, e mesmo sujeitos a uma rigorosa condenação se atreveram a chamar a si mesmos de Espírito Santo.[4]

O posicionamento de Eusébio sobre o montanismo é interpretado por alguns estudiosos como tendencioso, pois se colocava ao lado dos interesses dos bispos que na época buscavam a centralização do poder eclesiástico, dentro do processo de institucionalização da Igreja. Esse período é entendido por Dreher da seguinte maneira:

Quando Montanus terminou de ser batizado (156), entrou em êxtase e começou a falar em línguas. A maioria das pessoas não sabia mais do que se tratava. Apenas duas mulheres souberam. Elas também caíram em êxtase, abandonaram seus maridos e seguiram o novo profeta. Há muito que o dom de falar em línguas havia deixado de ser normal nas comunidades cristãs. O trio piedoso, formado por Montanus, Prisca e Maximila, queria testemunhar com sua glossolalia que a Igreja de seus dias era pobre em relação à Igreja antiga, pois lá a glossolalia fora algo normal. […] Seu maior adepto veio a ser Tertuliano (150-225). […] Tertuliano é, além disso, um dos grandes defensores da Igreja, merecendo o título de apologista. Combateu os marcionitas e gnósticos, mas viu, afinal, no rigorismo ético dos montanistas, a única possibilidade de eliminar as deteriorizações que estavam surgindo na Igreja.[5]

O comentário de Dreher é claro ao especificar a ausência da manifestação do falar em línguas na comunidade cristã, visto que “as pessoas não sabiam mais do que se tratava”, pois “há muito que o dom de falar em línguas havia deixado de ser normal nas comunidades cristãs”.

Sobre as “deteriorizações que estavam surgindo na Igreja”, Dreher é mais específico, ao relatar que já nos anos anteriores a 130-140 o entusiasmo do cristianismo primitivo estava desaparecendo, uma vez que a fé cristã assumia formas mais concretas através do processo de institucionalização. No período patrístico, já havia formas mais rígidas na organização das comunidades:

Na época em que o “Espírito” atuara na comunidade, não houve a possibilidade de “funcionários” desempenharem funções. Tudo fluía. A liderança espiritual estivera nas mãos de carismáticos: apóstolos, profetas e mestres. Os epíscopos e diáconos tinham apenas a função de auxiliares dos carismáticos. Quanto mais desaparecia a ação do Pneuma/Espírito, tanto mais epíscopos e diáconos passaram a ter evidência. É dentro dessa linha que surgiu o episcopado monárquico, o episcopado de apenas uma pessoa.[6]

O historiador Paul Johnson declara que algumas das difamações ortodoxas a seu respeito são invenções evidentes e afirma:

O melhor indício do mérito moral do movimento é o fato de Tertuliano, o açoite dos hereges, ter acabado se juntando a ele. Não podia continuar endossando uma ortodoxia que negava qualquer papel independente ao Espírito e insistia em que toda comunicação com a divindade devia ocorrer por meio dos canais eclesiásticos regulares.[7]

Para Johnson, a adesão de Tertuliano (c. 150-212) ao montanismo, um grande estadista da Igreja, homem íntegro e fervoroso na fé, desmonta por completo os ataques ortodoxos à moral e ao comportamento público dos montanistas, proporcionando, assim, um selo de aprovação ética ao movimento. De forma contundente, escreve: “Por via de regra, porém, os que contendiam com o que viria a ser mais tarde ou já era a tradição ortodoxa foram enterrados sob uma montanha de linguagem chula eclesiástica”.[8]

Tillich descreve o contexto histórico da seguinte maneira:

Contra a ordem em desenvolvimento surge a reação do Espírito, comandada por Montanus. Foi de tal forma séria que um teólogo como Tertuliano ingressou mais tarde no movimento. A reação montanista contra a fixação eclesiástica do cristianismo vai se estender pela história da igreja de um ou outro modo […]. A igreja não mais conseguia entender o espírito profético. Entende-se bem por que temia o Espírito: em nome dele entravam na igreja os mais variados elementos perturbadores da ordem […]. Logo depois do desapontamento a respeito da vinda iminente do fim anunciado por Jesus e pelos apóstolos, os pais apostólicos começaram a se estabelecer no mundo. Esse desapontamento causou enormes dificuldades e forçou a criação de uma igreja mundana, capaz de viver no mundo. O montanismo reagiu contra essa igreja mundana.[9]

Como pode ser observado no comentário anterior, institucionalização e mundanização se tornam termos sinônimos para Tillich. Uma nova ordem eclesial surge e, à medida que ganha corpo e influência, resiste a tudo aquilo que pode ameaçar a sua estabilidade e o seu crescimento.

Gradativamente a gestão humana foi substituindo a direção e a ação do Espírito na Igreja. Nos dias de Montano, o quadro era caótico. As funções carismáticas se tornaram forças rivalizantes com o clero estabelecido.

Dessa forma, defende-se que o movimento montanista foi uma tentativa de restaurar o mover e a direção do Espírito na vida da Igreja, como ocorria no tempo dos apóstolos, onde a profecia e a glossolalia (falar em outras línguas movido pelo Espírito) tinham o seu devido lugar. Sobre isso, Cairns escreve:

O montanismo surgiu na Frígia em 155 como uma tentativa da parte de Montano em resolver os problemas de formalismo na Igreja e a dependência da Igreja da liderança humana quando deveria depender do Espírito Santo. Esta tentativa de combater o formalismo e a organização humana levou-o a reafirmar as doutrinas do Espírito Santo e da Segunda Vinda. Infelizmente, como geralmente acontece em movimentos desta natureza, ele caiu para o extremo oposto e concebeu fanáticas e equivocadas interpretações da Bíblia. [10]

O montanismo foi um protesto decorrente do aumento na Igreja da força institucional em detrimento da diminuição da dependência do Espírito Santo. O fato lamentável foram os desvios decorrentes do alto entusiasmo com a reforma desejada. O montanismo é um alerta para que a Igreja não esqueça que a organização institucional e a doutrina não podem estar alienadas dos aspectos emocionais da natureza humana e do seu desejo por um contato espiritual imediato com Deus.[11] A exclusão do montanismo do seio da Igreja cristã é entendida por Tillich como uma perda, entre outras razões, pelo fato de que a hierarquia tradicional triunfou contra o espírito profético.[12]Olson compreende que os principais líderes da Igreja podem ter reagido ao montanismo com certa dose de exagero. Tal reação ocasionou, mesmo inconscientemente, a redução e a posterior cessação da manifestação dos dons espirituais entre os cristãos.[13]

Em razão de apenas os escritos daqueles que foram contra o “Movimento da Igreja Livre” terem sobrevivido, é preciso ter sensibilidade sobre a questão que envolve, dentre outros grupos, os montanistas, pois tais grupos se afastaram da igreja oficial da época em busca de uma igreja pura.[14]

Tertuliano justificou sua escolha pelo montanismo ao verificar nesse movimento o cumprimento cabal dos preceitos cristãos, classificando-o, naquele contexto, como a Igreja fiel a Cristo, que conhecia e defendia a obra do Espírito Santo.[15]


[1]Santos, Francisco Heládio Cunha dos. Montanismo e os profetas catafrigas: uma análise contra-hegemônica da história do movimento montanista. Fortaleza: Moriá Editora, 2011, p. 53.

[2]Santos, Francisco Heládio Cunha dos, ibid., p. 54.

[3]Eusébio de Cesareia. História eclesiástica: os primeiros quatro séculos da Igrejacristã. 4. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p. 182.

[4]Cirilo de Jerusalém. El Espíritu Santo. 3. ed. Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 1998, p. 39.

[5]Dreher, Martin N. Coleção História da Igreja. São Leopoldo: Sinodal, 1993, vol. 5, p. 36-37.

[6]Ibid., p. 26-27.

[7]Johnson, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 65.

[8]Ibid., p. 65-66.

[9]Tillich, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: Aste, 2000, p. 58-59.

[10]Cairns, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja cristã. 2. ed. Tradução de Israel Belo de Azevedo. São Paulo: Vida Nova, 1992, p. 82-83.

[11]Ibid., p. 83.

[12]Tillich, ibid., p. 60.

[13]Olson, Roger. História das controvérsias na teologia cristã: 2000 anos de unidade e diversidade. Tradução de Werner Fuchs. São Paulo: Vida, 2004, p. 83.

[14]MacArthur Jr., John. Ministério pastoral: alcançando a excelência no ministério cristão. Tradução de Lucy Yamakami. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 61.

[15]Santos, ibid.,p. 89.

Fonte: A Teologia do Espírito Santo nos Pais da Igreja (Editora Palavra Fiel)

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