É possível extrair teologia das narrativas bíblicas? Segundo Keener, nas últimas décadas, a crítica da narrativa bíblica tem realçado a importância de extrair teologia da narrativa. O próprio Gordo Fee, em sua articulação atual, corrobora com tal perspectiva, nuançada após diálogo com alguns colegas pentecostais, que corresponde em grande parte à tendência geral e atual.[1] Fee chegou a receber duras críticas de Stanley Horton ao rejeitar inicialmente os livros históricos da Bíblia como fonte de doutrina e teologia[2].  Ryken afirma que: “[…] as partes literárias podem e devem também ser abordadas como história e teologia.”[3]

Para Alister Macgrath, muito embora a doutrina e o credo estejam inquestionavelmente entrelaçados na estrutura narrativa, é através da narração que primordialmente a comunidade da fé se autodefine.[4] A narrativa e a doutrina se relacionam na medida em que a doutrina fornece a estrutura conceitual por meio da qual a narrativa escriturística é interpretada. Essa estrutura conceitual não é arbitrária, mas sim sugerida pelas próprias Escrituras. A narrativa é o elemento primário, e a estrutura interpretativa, o secundário.[5] Um processo de interação dinâmica entre doutrina e Escrituras, e entre a estrutura interpretativa e a própria narrativa acontece.[6]

A resistência em se fazer teologia com base em textos narrativos (ainda presente em alguns círculos evangélicos), é percebida na obra de Walter Henrichsen:

Ao ler o Novo Testamento você descobre que ele contém dois tipos de literatura – narrativa e instrutiva ou didática. (A maior parte do Apocalipse e certas porções dos evangelhos podem ser classificados como proféticas). As partes de narrativa traçam a vida do Senhor Jesus nos quatro evangelhos, e a história da igreja primitiva no livro de Atos. As cartas ou epístolas em grande parte foram escritas para instruir os membros daquelas primeiras igrejas sobre como viver a vida cristã. Ao estudas as porções didáticas você descobre que o escritor não diz que, porque tal coisa aconteceu, isto tem de ser verdade.  Em vez disso, afirma justamente o oposto. Porque isto é verdadeiro, uma coisa particular aconteceu. Por exemplo, o Novo Testamento não ensina que, porque Jesus ressurgiu dos mortos, Ele é o Filho de Deus. Antes, porque Ele é o Filho de Deus, ressurgiu dos mortos. Os acontecimentos que se desdobram através da Bíblia toda são interpretados com base no que Deus afirma que é verdade, e não vice-versa. Não concluímos que o mundo se corrompeu porque Deus o destruiu com um dilúvio nos dias de Noé. Ao contrário, diz a Bíblia que, porque o mundo se corrompera Deus disse que ia destruí-lo, e o fez. Através do livro de Atos vem à luz a narrativa do que sucedeu na vida dos crentes do primeiro século. Você não extrai conclusões doutrinárias desses acontecimentos, a menos que incluam pregação. Antes, você interpreta esses acontecimentos à luz de passagens doutrinárias.[7]

John Stott, na obra Batismo e Plenitude do Espírito Santo, afirma que:

[…] esta revelação do propósito de Deus na Bíblia deve ser buscada preferencialmente nas suas passagens didáticas, e não nas descritivas. Para ser mais preciso, devemos procurá-la nos ensinos de Jesus e nos sermões e escritos dos apóstolos, e não nas seções puramente narrativas de Atos. […] é preciso repetir que a doutrina do Espírito Santo não pode ser deduzida de passagens puramente descritivas em Atos. É impossível construir uma doutrina consistente a partir delas, porque elas não formam um padrão consistente.[8]

A posição de Henrichsen e Stott vai resultar em diferenças hermenêuticas ou metodológicas. Roger Stronstad afirma que as diferenças metodológicas surgem e coincidem com os diversos gêneros literários do Novo Testamento. É a diferença entre narração e teologia na literatura do Novo Testamento que levanta as questões metodológicas fundamentais para a doutrina do Espírito Santo. Para interpretar corretamente o registro de Lucas sobre o Espírito Santo, entre alguns problemas a serem resolvidos, está o caráter teológico da historiografia lucana.[9] Para Stronstad, está muito claro que os pentecostais enfatizam a intenção teológica normativa do registro histórico de Lucas pertinente ao dom do Espírito para a experiência cristã contemporânea.[10] Na perspectiva de Stronstad, a distinção rígida entre história (narrativa) e textos didáticos deveria ser revista. Ele chama de “dicotomia não bíblica” tal distinção rígida entre as passagens descritivas (históricas, narrativas) e didáticas (instrutivas) da Bíblia. A alegada distinção seria ainda estranha ao entendimento geral do Novo Testamento, onde, por exemplo, Paulo teria percebido incontestavelmente um propósito didático na narrativa histórica, incluindo a encontrada no Antigo Testamento, quando escreve: “Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar (διδασκαλίαν, didaskalian), para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda boa obra” (2 Tm 3.16,17), e ainda: “Porque tudo o que dantes foi escrito para o nosso ensino (διδασκαλίαν, didaskalian) foi escrito, para que, pela paciência e consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).

No entendimento de J. B. Libânio, a análise narrativa facilita a percepção do agir de Deus na história que escapa das teorias, mas que pode ser narrado, apontando para a presença, a pegada, a marca de Deus no evento. Ao contrário de atar exemplos a uma doutrina para ilustrá-la ou torná-la mais acessível às mentes simples, as narrações por si mesmas exprimem a fé e destilam teologia.[11]

Howard Marshall, em sua tese sobre os escritos de Lucas, é categórico, e para ele Lucas é historiador e teólogo. A teologia lucana foi baseada na tradição que ele avaliou da melhor maneira possível. Lucas usou sua história a serviço de sua teologia. Tem sido afirmado que Lucas representou tão mal os fatos por causa do seu interesse teológico que dificilmente podemos esperar encontrar uma base histórica confiável em seu trabalho. Nós devemos, portanto, começar por examinar esta hipótese com cuidado: história e teologia estão em oposição uma à outra?[12]

Classificar a narrativa lucana de Atos apenas com historiografia, é um mito criado pelos críticos contemporâneos.[13] Os episódios narrados por Lucas são de intenção histórico-teológico. Dessa maneira, as narrativas de Lucas são, em princípio, fonte importante e legítima para construir uma doutrina lucana do Espírito: “[…] os relatos históricos da atividade do Espírito em Atos estabelecem as bases da doutrina do Espírito que tem implicações normativas para a missão e experiência religiosa da igreja contemporânea”.[14] Para Marguerat, o sistema de composição do livro de Atos denota uma estratégia narrativa, e essa estratégia está a serviço de uma intenção teológica.[15]

Donald Johns, teólogo pentecostal, seguindo a mesma linha argumentativa, conclui que a maioria dos eruditos bíblicos concorda hoje que as narrativas bíblicas expressam as opiniões teológicas de seus autores.[16]

A intenção teológica presente nas narrativas bíblicas é uma questão defendida amplamente entre os eruditos na atualidade. Como bem analisa Craig Keener: “Nas últimas décadas, a crítica da narrativa bíblica tem realçado a importância de extrair teologia da narrativa, mais plenamente até do que a atenção que a geração anterior prestou à crítica editorial”.[17] Citando 2 Timóteo 3.16,17, para Keener: “Ignorar o valor instrutivo da narrativa, o maior dos principais gêneros nas Escrituras, deixa a igreja apenas parcialmente capacitada”.[18]

Antony D. Palma, também pentecostal, registra que acadêmicos contemporâneos afirmam que: “Lucas foi um teólogo à sua moda, bem como um historiador. Ele usa a História como um meio para apresentar sua teologia”.[19] 

Sobre as narrativas bíblicas e a atividade teológica, citando J. Sonnet e L. Zappella, Vítor escreve:

O projeto historiográfico da Bíblia é, simultaneamente, uma atividade teológica: o desenrolar da história está em permanente relação com o que o narrador relata ou deixa pressentir a respeito do desígnio de Deus. Importa sublinhar que, entre esses dois parâmetros, teológico e historiográfico, a arte narrativa constitui, na Bíblia, a mediação obrigatória. […] É na narração dos destinos humanos que o leitor assiste ao choque do encontro entre o desígnio divino e a contingência da história. […] Enquanto teonarrativa, a narrativa bíblica combina o componente narrativo e a densidade teológica, uma teologia da história e uma teologia por meio da história.  Isso acontece graças aos três elementos por meio dos quais a narrativa bíblica se torna teonarração: o enredo (a construção da narração), os agentes (os personagens e suas ações) o leitor (a interpretação).[20]

O apóstolo Paulo, longe de fazer distinções entre texto didático e texto narrativo, e consequentemente, entre texto descritivo e texto normativo, escreveu:
“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça,a fim de que o servo de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.” (2 Timóteo 3:16,17)


[1] KEENER, Craig S. A hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes. Tradução de Daniel Hubert Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 281-282.

[2] HORTON, Stanley M. O avivamento pentecostal: a origem e o futuro do maior movimento espiritual dos tempos moderno. Tradução de Judson Canto. Rio de Janeiro: CPAD, 1997, p. 75.

[3] RYKEN. Para ler a Bíblia como literatura, ibid., p. 10.

[4] MACGRATH, Alister E. A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária. Tradução de A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 74.

[5] MACGRATH, ibid., p. 77.

[6] Ibid., p. 79.

[7] HENRICHSEN, Walter A. Princípios de interpretação da Bíblia. 2. ed. Tradução de Odair Olivetti. São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p. 18-19.

[8] STOTT, John. Batismo e Plenitude do Espírito Santo: o mover sobrenatural de Deus. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 17, 32-33.

[9] STRONSTAD, Roger. A teologia carismática de Lucas: trajetória do Antigo Testamento a Lucas-Atos. Tradução de Luís Aron de Macedo. Rio de Janeiro: CPAD, 2018, p. 15.

[10] Ibid., p. 20.

[11] LIBÂNIO, J. B. Linguagens sobre Jesus: linguagem narrativa e exegética moderna. São Paulo: Paulus, 2012, p. 16.

[12] MARSHALL, Howard. Fundamentos da narrativa teológica de São Lucas: Lucas, historiador e teólogo. Tradução de Flávio de Andrade Vital. Natal, RN: Carisma, 2019, p. 26-28.

[13] Ibid., p 23.

[14] Ibid., p. 25.

[15] MARGUERAT, ibid., p. 203.

[16] JOHNS, Donald. Novas diretrizes hermenêuticas na doutrina da evidência inicial do pentecostalismo clássico. In: McGEE, Gary (ed.). Evidência inicial: perspectivas históricas e bíblicas sobre a doutrina pentecostal do batismo no Espírito. Tradução de Ícaro Alencar. Natal, RN: Carisma, 2017, p. 200, 212.

[17] KEENER, ibid., p. 281.

[18] Ibid., p. 282.

[19] PALMA, ibid., p. 11.

[20] VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia: primeiros passos de um método. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 31,42.

Obs: O presente texto é formado por citações e fragmentos do capítulo 6 da obra “Interpretando as Narrativas Bíblicas”.

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1 Comentário

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