É muito comum encontrarmos nas notas de rodapé de algumas Bíblias a informação sobre versículos (ou parte deles) no tocante a possível originalidade ou ausência desses em alguns manuscritos gregos nos seguintes termos: “não consta nos mais antigos e melhores manuscritos”. Os mais antigos manuscritos gregos do qual trata essas observações, são principalmente os Códices Sinaítico e Vaticano, ambos datados do século IV. Eles fazem parte da tradição textual alexandrina, que corresponde apenas a 1 ou 2% dos manuscritos gregos disponíveis, enquanto a tradição textual bizantina corresponde aproximadamente a 90-95% desses manuscritos.[1]

Os Códices Sinaítico e Vaticano formam a base principal das modernas edições do Novo Testamento em grego, com destaque para O Novo Testamento Grego (Quinta Edição Revisada) das Sociedades Bíblicas Unidas, que por sua vez é a base da tradução do Novo Testamento da Bíblia Nova Almeida Atualizada (NAA) e de outras versões modernas.

A antiguidade dos Códices Sinaítico e Vaticano autenticam por si só a qualidade desses manuscritos gregos? A resposta, é não. Na própria Bíblia de Estudo NAA, no artigo publicado em suas páginas finais intitulado “O Cânon da Escritura”, lemos que: “[…] muitos documentos foram produzidos no decurso do séc. 2, os quais, de algum modo, se assemelhavam ou imitavam os livros do NT.”[2]

Nesse mesmo período, na região de onde procede esses manuscritos mais antigos, sabe-se que:

A região de onde se originam os papiros era teologicamente confusa. As seitas e heresias proliferavam no Egito, bem como a produção de escritos pseudoepígrafes (evangelhos, atos, epístolas e apocalipses). Comentando a situação da Igreja Primitiva no Egito, Metzger observa que, “entre os documentos cristãos que se originaram ou circularam no Egito, durante o século segundo, tanto entre ortodoxos como entre gnósticos, estão inúmeros evangelhos apócrifos, atos, epístolas e apocalipses”.[3]

Sobre isso, escreve ainda Anglada:

Todos os manuscritos desse período foram localizados (e quase certamente copiados) em uma única região: o Egito. Essa, sempre, foi a conclusão geral dos estudiosos. Daí os nomes: “Egípcio” e “Alexandrino”, conferidos ao texto desses documentos. Parvis, por exemplo, escreve que “sem exceção, os papiros do NT que estão disponíveis, hoje, foram descobertos no Egito e indubitavelmente foram escritos ali”. Apenas recentemente, em virtude das diferenças textuais entre esses manuscritos e a suposta intensa movimentação de pessoas entre o Egito e o mundo greco-romano, sugeriu-se que os papiros não são necessariamente oriundos do Egito. Contudo, como reconhece Epp, a sugestão não passa de “imaginação histórica”, uma vez que “conhecemos muito pouco acerca de tal processo de transmissão” do Novo Testamento nesse período. O fato é que nenhum dos escritos do Novo Testamento foi endereçado ao Egito.[4] […] O fato é que os papiros “provam, conclusivamente, que no Egito, particularmente no segundo, terceiro e quarto séculos, nenhum dos tipos de texto do NT era dominante. Naqueles primeiros séculos, muitos tipos de texto floresciam lado a lado”.[5]

Por essas e outras razões, por volta do ano 200, a variação textual já existia nos manuscritos gregos do Novo Testamento:

Kilpatrick reconhece que “a variação textual entre manuscrito e manuscrito já existia por volta do ano 200 AD”, e ilustra o fato com as cerca de 73 diferenças existentes entre o Papiro Chester Beatty e o Papiro Bodmer em apenas 70 versos do Evangelho de João, sem contar os lapsos e correções marginais. Os documentos mais antigos do Novo Testamento são, de fato, peculiares quando comparados uns com os outros. Os únicos unciais desse período (ℵ e B), segundo Hoskier, apresentam mais de 3.000 diferenças somente nos Evangelhos.[6]

Alguns estudiosos afirmam que uma grande quantidade dessas diferenças são apenas diferenças ortográficas. Contudo, Hoskier declara de maneira muita evidente que não incluiu diferenças ortográficas entre as 3.000 diferenças (H. C. Hoskier, Codex B and its allies (2 vols.; Londres: Bernard Quaritch, 1914), II, 1ª página. Também está registrado em The Identity of The New Testament Text IV, página 39).[7]

Freitas observa sobre o Códice Vaticano e Sinaítico, que:

[…] uma análise exaustiva desses códices já foi feita por Herman C. Hoskier, Codex B and its allies (London: B. Quaritch, 2 vols. 1914). O primeiro volume possui 450 páginas listando centenas de erros óbvios no Códice B. O segundo volume possui 350 páginas listando centenas de erros óbvios no Códice Aleph (א). Além disso, eles discordam entre si mais de 3 mil vezes apenas nos 4 evangelhos, além das centenas de lugares em que ambos estão errados.[8]

E ainda:

Quanto ao Códice (א), a folha dobrada, portanto 4 páginas, com o final de Marcos e o início de Lucas é, francamente, uma falsificação. Tischendorf, que descobriu o códice, alertou que essas quatro páginas pareciam ter sido escritas por uma mão diferente e com tinta diferente do resto do manuscrito.[9] […] O Códice B está escrito em velino muito fino (pergaminho de qualidade muito especial). Ele contém os testamentos AT e NT em grego. Faltam alguns livros do NT. Geralmente tem sido datado ao século IV, cerca de 325. O Dr. Pickering considera que o Códice B é uma cópia fabricada, devido às alterações deliberadas. Como muitas mudanças no texto alteram o significado e fazem sentido, parece que essas mudanças foram deliberadas. Além disso, o livro tem muitos erros de descuidos. Se um copista estava tentando fazer uma cópia com um objetivo diferente, o Dr. Pickering chama isso de fabricado. Portanto, uma cópia fabricada é uma cópia inventada pelo copista. Ele não estava tentando copiar o texto exato de um exemplar. Ele estava copiando com um propósito desconhecido.[10]

Dessa forma, conclui-se que:

[…] se “os mais antigos são os melhores” e os MSS mais antigos estão em desacordo constante e maciçamente entre si, a recuperação de um texto perdido fica sem esperança. Você entendeu isso? Sem esperança, totalmente sem esperança! No entanto, ele explica que “os mais antigos são os piores” o que muda radicalmente o quadro.[11]

Outra questão sobre os manuscritos mais antigos, que envolve os Códices Sinaítico e Vaticano, diz respeito a preservação dos mesmo. Sobre isso, lemos:

Quais foram as condições que permitiram os MSS sobreviverem? 1) Como o deserto no Egito é seco e quente, um MS enterrado ali resistirá à ação do tempo. 2) Como ninguém os copiou, dizemos que eles não têm “filhos”. Provavelmente não foram copiados porque a qualidade do texto não era aceitável. 3) Esses são manuscritos gregos. Como no Egito eles não falavam grego, um MS grego não teria utilidade para uma pessoa comum. 4) Uma pessoa que tenta copiar um texto em um idioma que não conhece, previsivelmente cometerá muitos erros sem sentido, o que tornaria a cópia praticamente impossível de usar. Um MS como o P66 (Papiro 66), que tem uma média de 2 erros por verso, é psicologicamente impossível de usar. Você pode tentar ler um documento com esse número de erros para entender o problema. Comparado com o consenso existente na massa de MSS, um MS cheio de variantes privativas é autocondenado. Então, quando esses MSS estão em constante desacordo entre si, isso diminui ainda mais sua respeitabilidade. São cópias ruins.[12]

Baseado nas análises aqui descritas, os “melhores manuscritos”, assim considerados devido a sua antiguidade, são questionáveis pelas seguintes razões: (a) Divergem textualmente entre si de maneira bastante significativa; (b) São oriundos de uma região geográfica pouco confiável na produção dessas cópias; (c) Estavam esquecidos e abandonados em seus locais de descoberta; (d) São de péssima qualidade textual e de pouca confiabilidade; (e) Estão incluídos entre os manuscritos gregos alexandrinos (egípcios), que representam apenas 1-2% de todos os manuscritos gregos descobertos.

Para citar apenas um exemplo do problema, em O Novo Testamento Grego das Sociedades Bíblicas Unidas lemos em Lucas 4.44 que Jesus pregava nas sinagogas da “Judeia” (Ἰουδαίας, Ioudaias), quando na realidade o contexto deixa claro que ele estava na Galileia (cf. Mt 4.23 e Mc 1.39). Tal erro é uma reprodução literal daquilo que se encontra nos Códices Sinaítico e Vaticano.[13]

E o que dizer do apoio da “academia” para esses manuscritos alexandrinos? Trata-se da mesma academia que defende e apoia majoritariamente o liberalismo teológico e a teologia ideológica progressista. Menos mal, que nem todos os acadêmicos que defendem os textos alexandrinos (Códices Sinaítico, Vaticano, etc.) são teólogos liberais ou progressistas.

Mais uma vez, afirmo que no momento, até que novas descobertas arqueológicas de manuscritos gregos do Novo Testamento aconteçam, mudando substancialmente o atual quadro, a minha opção é pela grande tradição textual bizantina (90-95% dos manuscritos gregos), representada atualmente pelo Textus Receptus (Beza-Scrivener), Texto Majoritário (Hodges-Farstad) e O Novo Testamento Grego Segundo a Família 35 (Wilbur N. Pickering).

Em termos de versões bíblicas, seguindo a tradição textual grega bizantina no Novo Testamento, estão a Almeida Revista e Corrigida (Sociedade Bíblica do Brasil), Almeida Revista Fiel (Sociedade Bíblica Trinitariana) e King James 1611 (bvbooks).

É importante ressaltar, que em meio a todas essas questões e discussões, nenhuma doutrina central da Bíblia é afetada. A Bíblia continua sendo a inspirada, inerrante e infalível Palavra de Deus.


[1] PICKERING, Wilbur N. O Novo Testamento Grego Segundo a Família 35: texto grego e aparato crítico. Brasília: 2021, p. XII.

[2] Bíblia de Estudo NAA. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2019, p. 2471.

[3] ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o Final do Evangelho de Marcos (Portuguese Edition). Knox Publicações. 2014, Edição do Kindle, p. 337.

[4] Ibid., p. 327.

[5] Ibid., p. 347.

[6] Ibid., p. 358. Os estudos de Hoskier estão disponíveis em Herman C. Hoskier, Codex B and its Allies, vol. 1 e 2 (London: Bernard Quaritch, 1914).

[7] Freitas, Marcelo. Família 35: Texto Original do Novo Testamento: Exposição de evidências (Portuguese Edition) (p. 52). Simplíssimo. Edição do Kindle.

[8] Ibid., p. 132).

[9] Ibid., p. 132.

[10] Ibid., p. 133, 134.

[11] Ibid., p. 52.

[12] Ibid., p. 50,51

[13] O Novo Testamento Grego. Barueri, SP: Sociedade Bíblica Alemã; Sociedade Bíblica do Brasil: 2019, p. 170.

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