Nos últimos anos, motivados pelo interesse de promover novos métodos hermenêuticos para a leitura e interpretação bíblica no contexto pentecostal, alguns teólogos passaram a atacar e a declarar a necessidade do abandono do método histórico-gramatical. Citarei aqui dois exemplos.

O primeiro pode ser encontrado na obra “Experiência e Hermenêutica Pentecostal: reflexões e propostas para a construção de uma identidade teológica”, escrita por David Mesquiati de Oliveira e Keneer R. C. Terra, publicada em 2018 pela CPAD, e tirada de circulação no ano seguinte. Nesta obra pode-se encontrar as declarações abaixo:

Obviamente, tal exegeta (pentecostal) não pode estar estabelecido em bases racionalistas da Modernidade cujos principais projetos hermenêuticos se estabeleceram (estabelecem) através da busca objetiva da intenção do autor como fazem as leituras histórico-gramatical e histórico-crítica.[1]

Assim, precisamos pensar os avanços realizados pelas teorias literárias adotadas para a leitura da Bíblia. Essas pesquisas apresentam novas questões aos textos e acabam se tornando uma crítica indireta à exegese tradicional, que tem suas bases em conceitos tais como intenção autoral, contexto histórico e leitores reais.[2]

O segundo exemplo se encontra na obra “Pentecostalismo e Pós-Modernidade: quando a experiência sobrepõe-se à teologia”, de César Moisés Carvalho, publicada pela CPAD em 2017, onde lemos que em razão de algumas distinções de pressupostos entre pentecostais e reformados: “[…] o pentecostal não pode seguir os métodos hermenêuticos dos liberais e nem dos reformados, pois ambos são ajustados para embasarem as ideias e crenças de ambos os grupos.”[3]

O método histórico-gramatical é utilizado pela maioria absoluta dos pentecostais assembleianos brasileiros treinados teologicamente, e de forma implícita ele é mencionado na Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil, que descreve os seus fundamentos: “Nós a interpretamos (a Bíblia) sob a orientação do Espírito, observando as regras gramaticais e o contexto histórico e literário.”[4] Como bem coloca Keener:

Os primeiros pentecostais às vezes usavam o contexto histórico e às vezes até mesmo as línguas bíblicas – normalmente quando precisavam resolver uma dificuldade; eles “estavam interessados tanto no contexto ‘histórico-cultural’ como no ‘gramatical’ de uma passagem”. No entanto, embora a maioria claramente não se opusesse a usar o contexto original, o acesso a esse cenário raramente estava disponível em um nível popular. Como eram mais pregadores populares do que os estudiosos acadêmicos, os primeiros pentecostais normalmente não usavam e não podiam “usar o método exegético histórico-gramatical ensinado pela academia”.[5]

Foi a falta de oportunidade e de acesso ao estudo acadêmico, e não o descaso e o desprezo com o método histórico-gramatical que levou muitos pentecostais a uma leitura e interpretação desassociada deste método, enfatizando assim a corrente subjetivista (através da uso da alegoria, onde se defende a ideia de diversos sentidos presentes num texto sagrado: moral, alegórico, anagógico etc.) e a corrente intuitiva (através da identificação da mensagem do texto com os pensamentos subjetivos sobre o mesmo, bucando no texto relevância moral ou espiritual imediata, sem considerar contexto histórico, cultural, textual, linguístico etc.).

Colocar o método histórico-gramatical (dos reformados) ao lado dos métodos liberais é uma atitude que demonstra o desprezo por tão relevante método hermenêutico, e o descaso para com a história do referido método, que não foi aplicado (como tentam insinuar) originalmente num contexto racionalista moderno.

O método histórico-gramatical teve seu ressurgimento nos reformadores, e foi utilizado anteriormente (ou alguns dos seus princípios) pela escola de Antioquia da Síria (séc. II ao IV), por alguns pais da igreja ocidental (séc. IV e V), pelos monges do mosteiro de São Victor, na França (séc. XII), pelos pré-reformadores (séc. XIV) e pelos humanistas cristãos renascentistas (séc. XV e XVI).[6] A Reforma Protestante está diretamente associada à reforma hermenêutico-exegética, que rompe com a alegorização predominante na Idade Média. Conforme Keener:

Descobrir “o significado e a intenção originais” de um texto é o objetivo do método histórico-gramatical. […] alguns associam a intenção autoral com “uma hermenêutica racionalista iluminista” ou com “o método histórico-crítico”. No entanto, os intérpretes claramente já usavam a “exegese histórico-gramatical” antes do domínio da crítica histórica moderna. Reformadores como Zuínglio enfatizavam a atenção para questões como “pesquisa gramatical, retórica e histórica na elucidação do texto bíblico. […] Esse modo de leitura dos textos também não é exclusivamente antigo. Lutero, por exemplo, enfatizava “o princípio histórico-gramatical” contra a abordagem escolástica quádrupla. Essa abordagem histórica e gramatical também caracterizava Calvino e os reformadores de forma geral.[7]

O método hermenêutico dos reformadores é, e deve continuar sendo utilizado pelos pentecostais, diferente do que alguns teólogos progressistas afirmam. O referido método foi e continua sendo aplicado com base em pressupostos ortodoxos. Keener cita carinhosamente o seu professor Stanley M. Horton, que colocou o seu treinamento acadêmico a serviço das Assembleias de Deus (incluídos aí a língua e o contexto cultural).[8]

Raimundo de Oliveira afirma que: “A Bíblia Sagrada foi escrita em linguagem humana e, consequentemente, deve, antes de mais nada, ser interpretada gramaticalmente”.[9] Em se tratando da importância do contexto histórico do autor bíblico, Oliveira afirma que acima de tudo, a Bíblia um livro de histórias, e em razão disso algumas regras precisam ser observadas para a sua interpretação. São elas:[10]

– Uma palavra nunca é compreendida completamente até que se possa entendê-la como palavra viva, isto é, originada na alma do autor;

– É possível entender um autor e interpretar corretamente suas palavras sem que ele seja visto, à luz de suas circunstâncias históricas;

– Uma vez que as Escrituras se originaram de modo histórico, elas devem ser interpretadas à luz da história.

Para James H. Railey e Benny C. Aker Jr. o alvo da exegese é:

[…] deixar as Escrituras dizerem o que o Espírito Santo pretendia que dissesse no seu contexto original. No caso de cada texto, portanto, o intérprete deve analisar o contexto social e histórico, o gênero literário e outros fatores afins, e a luz lançada pelos idiomas originais. […] Devemos tomar cuidado de não supor ingenuamente ser a base cultural e histórica do escritor bíblico a mesma de nossos dias. Não é a mesma. Entre o intérprete e qualquer texto bíblico há vastas diferenças culturais e históricas. […] o significado de uma palavra pode ser determinado somente pelo exame do contexto social em que é usada. […] O contexto, portanto, é de máxima importância.[11]

A utilização do método histórico-gramatical não significa que os hermeneutas pentecostais assembleianos não possam se apropriar simultaneamente de outros métodos, por exemplo, para interpretar o gênero literário narrativo, desde que com pressupostos conservadores e ortodoxos.[12]

Descartar o método dos reformadores (histórico-gramatical), colocá-lo no mesmo nível da prática liberal e racionalista é uma atitude extrema, insensata e prejudicial para o pentecostalismo assembleiano brasileiro, pois:

Trata-se de um método é extremamente frutífero, consistente com as pressuposições bíblicas quanto à própria natureza das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos linguísticos e históricos coerentes com o caráter divino-humano da Bíblia.[13]

A hermenêutica progressista pós-moderna, que descarta e despreza o método histórico-gramatical, está sendo promovida por alguns pentecostais assembleianos, e para identificá-la segue abaixo algumas de suas características:

– Ênfase na experiência dos leitores em detrimento das Escrituras;

– Ênfase no leitor em detrimento do autor;

– Ênfase em pressupostos pós-modernos em detrimento dos pressupostos ortodoxos;

– Ênfase em novas metodologias em detrimento das já consolidadas;

– Ênfase na subjetividade do intérprete em detrimento da objetividade do texto;

– Ênfase na multiplicidade de significados em detrimento da intenção autoral;

Keener é preciso em sua análise, ao afirmar que em razão da ênfase demasiada na experiência dos leitores, alguns críticos hoje negligenciam a importância fundacional do significado antigo. O significado antigo, canônico, deve e precisa nortear e arbitrar as alegações para a interpretação do texto hoje. O interesse pelo significado antigo, onde o método histórico-gramatical coopera em sua busca (sem negligenciar a sua aplicação contextualizada), não é uma invenção moderna, mas um interesse do próprio Espírito que originalmente inspirou o texto.[14]


[1] OLIVEIRA, Davi Mesquiati; TERRA, Kenner R. C. Experiência e Hermenêutica Pentecostal: reflexões e propostas para a construção de uma identidade teológica. Rio de Janeiro: CPAD, 2018, p.  51.

[2] Ibid., p. 64.

[3] CARVALHO, César Moisés. Pentecostalismo e Pós-Modernidade: quando a experiência sobrepõe-se à teologia. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 220.

[4] Declaração de Fé das Assembleias de Deu no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 29.

[5] KEENER, Craig S. A hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz de Pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 230-231.

[6] ANGLADA, Paulo. Introdução à hermenêutica reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e métodos linguísticos.  Ananindeua: Knox Publicações, 2016, p. 60.

[7] KEENER, ibid., p. 226-231.

[8] Ibid., p. 231.

[9] OLIVEIRA, Raimundo de. Como estudar e interpretar a Bíblia: um método que permite à Bíblia falar por si mesma. Rio de Janeiro: CPAD, 1986, p. 111.

[10] Ibid., p. 123-134.

[11] RAILEY, James H.; Jr. AKER, Benny C. Fundamentos teológicos. In: HORTON, Stanley (E.). Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal. 11. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, p. 56-57.

[12] GERMANO, Altair. Interpretando as narrativas bíblicas. Joinville: Santorini, 2020, p. 9.

[13] ANGLADA, ibid., p. 101.

[14] KEENER, ibid., p. 211.

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