A Teologia da Libertação foi gestada no ambiente eclesial através da Ação Católica especializada e, no Brasil, nas práticas do Movimento de Educação de Base (MEB), das Escolas Radiofônicas e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Nesses meios, seus militantes entenderam a necessidade de uma prática da fé mais engajada com as questões políticas e sociais, que resultasse numa transformação da realidade nacional. O referencial teórico da Teologia da Libertação fundamenta-se: “na teologia das realidades terrestres de G. Thils, no humanismo integral de J. Maritain, no personalismo social de E. Mounier, no evolucionismo progressista de Teilhard Chardin, na reflexão sobre a dimensão social dos dogmas de H. de Lubac, na teologia do laicado de Y. Congar ou na reflexão de M. D. Chenu”.[1]

Vários encontros de teólogos aprofundaram o interesse pela inter-relação entre fé e política, e entre evangelho e justiça social. Nesta perspectiva, o primeiro encontro de teólogos latino-americanos aconteceu em Petrópolis, em março de 1964, seguido dos encontros em Havana, Bogotá e Cuernavaca, em 1965, e dos encontros de Montreal e Chimbote (Peru), em 1967. Em março de 1970 foi celebrado em Bogotá o primeiro congresso sobre Teologia da Libertação, repetido novamente na mesma cidade em julho de 1971. Do lado protestante, o ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), entre 1970 e 1971, organizou em Bueno Aires, algo semelhante.[2]

A elaboração de uma teologia da libertação recebeu o primeiro impulso por ocasião da conferência dos bispos católicos latino-americanos, realizada em Medellín, em 1968. Naquele contexto foi lançada as bases da teologia da libertação, e isso mediante a realização de uma análise crítica da situação em que se encontravam as populações deste continente, onde foi entendida a necessidade de um maior envolvimento no nível político e social.[3]

Segundo Miller e Grenz, a verdadeira origem da Teologia da Libertação remonta a alguns acontecimentos dos anos 50 e 60, dentre os quais, o surgimento na Europa, de um movimento vagamente associado à teologia da esperança, de Jürgen Moltmann e que ficou conhecido como “teologia política”: “Um dos seus proponentes, Johannes Metz, católico-romano colega de Moltmann em Tübingen, elevou a práxis política, isto é, a participação engajada, à condição de ponto seminal da reflexão teológica”.[4]

A cooperação do educador Paulo Freire à Teologia da Libertação é também destacada por Miller e Grenz:

A essa altura, os fundamentos práticos da teologia da libertação já haviam sido assentados na obra de Paulo Freire, educador católico do nordeste brasileiro. O fim da década de 1950 e princípio dos anos 60 foram testemunhas de um desencantamento crescente (na perspectiva socialista)[5] com o desenvolvimento econômico como forma de erradicar a pobreza na América Latina. Freire se voltou então diretamente para os pobres na tentativa de articular os primeiros passos que permitiriam lidar com seus problemas. Ele disse que os pobres precisavam se libertar da “mentalidade condicionada pela dominação”, e os ricos de sua mentalidade “condicionada pelo domínio”. Com esse objetivo, o educador brasileiro se engajou no que chamou de conscientização (marxista/socialista).[6]

A sistematização da Teologia da Libertação se origina na obra Teologia da Libertação: Perspectivas, escrita por Gustavo Gutiérrez, publicada originalmente no Peru, em 1971. A teologia é compreendida por Gutiérrez como:

[…] “momento segundo”, precedido pela práxis de libertação. É o que mais tarde se denomina “passo zero”, “ato primeiro” ou “momento pré-teológico”, que pressupõe o engajamento ou “a experiência de Deus no pobre” por parte do teólogo, porquanto se trata de uma teologia que toma a práxis[7] não como tema ou objeto, mas como lugar epistêmico. Sem esta “síntese viva com a prática viva”, o teólogo não reúne as condições epistemológicas adequadas para fazer Teologia da Libertação.[8]

Assim como Gutiérrez, os irmãos Boff também afirmam que o primeiro passo para a Teologia é pré-teológico. Trata-se de viver o compromisso da fé, e de participar, de alguma forma, no processo libertador, de estar comprometido com os oprimidos. É preciso que o teólogo tenha primeiro um conhecimento direto da realidade da opressão/libertação, e isso através de um engajamento desinteressado e solidário com os pobres.[9]

Teologia(s) da Libertação, Marxismo, Socialismo, Progressismo e Hermenêutica

Um dos aspectos mais controversos da Teologia da Libertação se relaciona com a análise que ela faz das causas da pobreza na América Latina, especialmente o uso que faz da análise social marxista para compreender tanto a situação quanto sua solução.[10]

O princípio hermenêutico da Teologia da Libertação é a filosofia marxista. Uma nova interpretação da salvação cristã consiste essencialmente na libertação, sendo esta entendida não apenas no sentido individualista, como também social, histórico e intramundano. A libertação cristã deve libertar o indivíduos de toda forma de opressão: social, econômica e política. A estratégia para conseguir a libertação é a proposta por Marx, a luta de classe.[11]

A filosofia hermenêutica da Teologia da Libertação (e das temais teologias da libertação) pode também ser associada à Hans Georg Gadamer (1900-2002) e Paul Ricoeur (1913-2005), ainda que nem sempre os referidos teóricos sejam citados por seus teólogos.[12]

Mesmo com algumas críticas e reservas em relação ao marxismo, os teólogos da libertação não abrem mão de algumas das suas perspectivas hermenêuticas, sociais e econômicas.

Gutiérrez, considerando os condicionamentos sociais, econômicos e políticos da ação humana, dialoga com o marxismo, se orientando por ele para um raciocínio sobre o significado da transformação do mundo e sobre a ação do homem na história.[13]

As teses mais qualificantes da teologia de Hugo Assmann (1933-2008), que envolvem a análise sócio-política da realidade, a subordinação da teoria e da ortodoxia à práxis, a primazia da dimensão política sobre as demais dimensões do indivíduo e da sociedade, a estratégia de luta de classes para se conseguir a libertação, tudo isso sinaliza a influência marxista em Assmann, mesmo que o mesmo não siga Marx em tudo.[14]

Cabe destacar aqui, que um dos poucos teólogos protestantes que aderiram à Teologia da Libertação foi o metodista José Míguez Bonino, da Argentina, que se tornou um dos principais defensores do uso cristão da análise social marxista, e foi autor dos livros “Os Cristãos e os Marxistas” e “Fazendo Teologia numa Situação Revolucionária”, sendo esse último a sua principal obra, onde ele apresenta as bases para a Teologia da Libertação, chamando a igreja à superar sua atitude de privatização ou identificação com o sistema e envolver-se com a luta revolucionária em favor dos pobres, e isso adotando e adaptando o marxismo para a teologia em seu contexto latino-americano.

É obvio que toda sorte de opressão e injustiça, inclusive a pobreza, deve ser profeticamente (não politicamente ou ideologicamente) denunciada pela igreja de Jesus. Tanto o capitalismo quanto o socialismo já se revelaram como sistemas opressivos, cada um com o seu jeito próprio e peculiar de opressão. Acontece, que o combate a pobreza não é a prioridade da mensagem nem da prática da igreja, o que não significa que a igreja não deva ter preocupação alguma com a condição dos pobres. O Novo Testamento está repleto, como já visto, de exemplos de ações da igreja em favor dos pobres e necessitados.

Que Jesus se preocupou com os pobres não temos dúvidas, contudo, quando lemos algumas das passagens bíblicas onde Jesus faz alusão aos pobres, eles não são citados sozinhos (nem considerados apenas da perspectiva socioeconômica), antes, são associados com aqueles que sofrem e são oprimidos por alguma outra situação e condição específica.


[1] MÜLLER, Gerhard Ludwig; GUTIÉRREZ, Gustavo. Ao lado dos pobres: teologia da libertação. Tradução Paulo F. Valério. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 9.

[2] MÜLLER; GUTIÉRREZ, ibid., p. 12.

[3] MONDIN, B. Os teólogos da libertação. Tradução de Hugo Toschi. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 30,31.

[4] MILLER, ED. L.; GRENZ, Stanley J. Teologias contemporâneas. Tradução de Antivan G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 167.

[5] Nota do autor.

[6] Nota do autor. MILLER; GRENZ, ibid., p. 169

[7] Práxis é uma palavra com origem no termo em grego praxis que significa conduta ou ação. Corresponde a uma atividade prática em oposição à teoria. A Teologia da Libertação não é uma reflexão (ou teorização) que procura justificar, com base na Bíblia, uma opção revolucionária, é sim, uma reflexão teológica que nasce, vive e se constrói no contexto da prática e envolvimento consciente (militância) com o processo revolucionário da libertação (Mondin, ibid., p. 76).

[8] MÜLLER; GUTIÉRREZ, ibid., p. 14.

[9] BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer teologia da libertação. 7 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998, p. 42,42.

[10] MILLER; GRENZ, ibid., p. 171.

[11] MONDIN, ibid., p. 34.

[12] ZABATIERO, Julio. Hermenêutica contextual. São Paulo: Garimpo Editorial, 2017, p. 15.

[13] MONDIN, ibid., p. 71.

[14] MONDIN, ibid., p. 89,90.

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