A produção literária do Novo Testamento é resultado direto das políticas educacionais dos dias de Jesus e dos apóstolos. Sem uma educação adequada, que capacitasse os escritores do Novo Testamento a ler, escrever e ter conhecimentos gerais da cultura do seu tempo, não teríamos o texto inspirado do cânon sagrado. Foi aos homens, e não aos anjos, que Deus delegou a tarefa de escrever a revelação. Para João, em Patmos, Jesus disse: “Escreva num livro o que você vê e mande-o às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia”.[1]

Nos dias de Jesus havia escolas na Palestina, cujas origens datam de cerca de 100 anos antes dessa época. A primeira escola (beth hasefer, casa do livro), foi aberta pelo rabino Simon bem Shetach, irmão da rainha Salomé Alexandra e presidente do Sinédrio, tendo o seu exemplo seguido por outros e, aos poucos, todo um sistema de instrução pública veio a existir. A escola primária ficava ligada à sinagoga, e as crianças começavam a frequentá-la na idade de cinco anos. O ministro da sinagoga (hazzan) era o professor.  Havia muito respeito pelos professores. Quando o número de alunos excedia vinte e cinco, um professor especial era nomeado. Os alunos ficavam sentados em volta do mestre, no chão. A Torá era estudada, e com base nela os meninos eram alfabetizados, aprendiam linguagem, gramática, história, geografia e a Lei. As meninas não frequentavam a escola, cabendo ao pai ensiná-las em casa.[2] Às mães eram responsáveis por ensinar as meninas o ofício de esposa e mãe, E em como cuidar da casa.[3]

A educação primária ou básica tinha os seguintes estágios de desenvolvimento: (a) aos cinco anos começa os estudos sagrados; (b) aos dez anos é iniciado o estudo da Tradição; (c) aos treze anos toda a Lei deve ser conhecida e praticada; e (d) aos quinze anos tem início o nível avançado de estudos. A especialização nos estudos religiosos, num nível bastante superior, se dava em Jerusalém, onde o jovem entrava numa das escolas (beth ha-midrash) onde ensinavam os mais famosos e reconhecidos doutores da Lei, e onde Paulo estudou aos pés de Gamaliel (At 5.34; 22.3). Esses grupos de estudo tinham por finalidade produzir futuros doutores da Lei. A maioria dos meninos judeus não alcançavam esse nível de educação e formação.[4] O aluno tinha uma convivência com o seu mestre, e quando passava a dominar a matéria tradicional, resolvendo por si mesmo questões de legislação religiosa e ritual, tornava-se “doutor não ordenado” (talmid hakam). Somente aos 40 anos de idade (idade canônica), é que podia pela ordenação ser recebido como membro legítimo, um “doutor ordenado” (hakam), e assim exercer a atividade de juiz em processos criminais e dar pareceres nos processos civis, na condição de membro de uma corte de justiça ou individualmente. Passava também a merecer o título de rabi. O conhecimento da exegese escriturística era obrigatório nas sentenças judiciárias. Apenas doutores ordenados transmitiam e criavam a tradição derivada da Torá, colocado por vezes pelos fariseus em pé de igualdade com a Lei escrita, e até mesmo acima dela (Mt 15.1-6).[5]

Diante da realidade da política educacional dos dias de Jesus, não há dificuldade alguma em entender que ele próprio frequentou a escola. Algumas questões sugerem isso: (a) ele aos doze anos já discutia com os doutores da Lei, sendo portador de uma capacidade cognitiva e inteligência incomparáveis (Lc 2.46,47); (b) ele sabia ler (Lc 4.16-20); e (c) ele sabia escrever (Jo 8.6). É relevante, que considerando a humanidade de Jesus, Lucas afirme por duas vezes: “O menino crescia e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele. […] E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2.40,52). O verbo “crescer” em Lucas 2.40 (gr. ēuxanen) e Lucas 2.52 (gr. proekopten), enfatiza  o seu desenvolvimento humano integral e progressivo, onde aqui ganha destaque os aspectos mentais e cognitivos desse processo (sabedoria, sophia).

O fato de os judeus alegarem que Jesus não chegou a estudar (Jo 7.15), se relaciona com o estudo rabínico, que dava autoridade para o ensino em espaço público, tendo em vista que ele estava ensinando no templo (v. 14). A autoridade de Jesus para ensinar em espaços públicos não vinha do sistema oficial judaico, mas do Pai (v. 16). O verbo grego ethalmazon, (v. 15), traduzido na versão da Bíblia Nova Almeida Atualizada por “se maravilhavam”, pode ser traduzido por “se espantavam”. A expressão “os judeus” (v. 15) pode incluir as autoridades judaicas.

Pedro e João eram analfabetos? Em Atos 4.13 Pedro e João são chamados pelas autoridades religiosas de “homens sem letras e indoutos” (ARC) ou “iletrados e incultos” (NAA). De forma equivocada, muitos chegaram a ensinar que eles eram analfabetos. As evidências históricas, gramaticais e internas provam tal equívoco.

Gramaticalmente, os termos gregos utilizados por Lucas em Atos 4.13, traduzidos por “homens sem letras e indoutos”, ou “iletrados e incultos” são respectivamente ἀγράμματοί (agrammatoi) e ἰδιῶται (idiōtai). Agrammatoi se refere aqui a ausência de educação rabínica formal, e idiōtai se refere ao fato de não terem adquirido especialização em determinada área do conhecimento. São termos praticamente sinônimos.  

Além das evidências externas, as evidências internas do Novo Testamento confirmam que Pedro e João sabiam escrever. Pedro escreveu duas epístolas, enquanto João escreveu um evangelho, três epistolas e o livro de Apocalipse. Embora o uso de secretários (amanuenses) fosse comum, é improvável que em todos os seus escritos Pedro e João se utilizaram deles (ver 1 Pe 5.12; 2 Pe 3.1; 2 Jo 12; Ap 1.11,19; 2.1, 8, 12, 18; 3.1, 7 e 14). Alguns estudiosos sugerem com base na análise textual do grego, que Silvano (1 Pe 5.12) foi o entregador da carta, e não o escritor (amanuense) da mesma. Mas, mesmo se colaborou com Pedro na escrita de sua primeira epístola, o contexto histórico-gramatical, e as demais evidências internas do Novo Testamento, demonstram que Pedro e João sabiam ler e escrever.


[1] Apocalipse 1.11

[2] DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. 2. ed.  Tradução de Neyd Siqueira. São Paulo: Vida Nova, 1986 , p. 78,79.       

[3] VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 74.

[4] DANIEL-ROPS, ibid., p. 80.

[5] JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus. Tradução de M. Cecília de M. Duprat. Santo André SP: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010, p. 320-322.

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