A crítica textual é a porta de entrada da exegese. Ela considera o fato de que não dispomos (igreja e mundo acadêmico) do texto bíblico original, mas apenas de cópias que chegaram até nós ao longo da história da transmissão do texto. Dessa forma, o texto não é apenas a base da interpretação ou exegese bíblica, sendo ele próprio objeto de pesquisa histórica. Não há sentido em interpretar as Escrituras a partir de um erro de cópia. A crítica textual se dedica a tarefa de disponibilizar e responsabilizar-se pela apresentação de um texto bíblico confiável.[1] Nossa ênfase ao tratar da crítica textual recairá sobre o texto do Novo Testamento.

No processo que envolve a busca pela descoberta da forma original de detalhes do texto bíblico, são feitas tentativas para descrever como os textos foram escritos, alterados e transmitidos de uma geração para outra. Sobre isso, esclarece Emanuel Tov:

O texto bíblico foi transmitido em muitas fontes antigas e medievais que são conhecidas por nós de edições modernas em diferentes línguas: possuímos fragmentos de rolos de pergaminho e de papiro que possuem pelo menos dois mil anos em hebraico, grego e aramaico, assim como manuscritos em hebraico e outras línguas da Idade Média. Estas fontes lançam luz sobre testemunhos para o texto bíblico, por isso seu nome: “testemunhos textuais”. Todos estes testemunhos textuais diferem uns dos outros em maior ou menor extensão. Por nenhuma fonte textual conter o que pudesse ser denominado o texto bíblico, um envolvimento sério nos estudos bíblicos exige o estudo de todas as fontes, em que, necessariamente, envolve das diferenças entre elas. A análise dessas diferenças textuais toma, assim, um lugar central dentro da crítica textual.[2]

Em se tratando da transmissão do texto do Novo Testamento, Omanson relata:

Nos primeiros tempos da Igreja cristã, depois que uma carta apostólica havia sido enviada a uma congregação ou a um indivíduo, ou depois que um Evangelho havia sido escrito para atender às necessidades de um determinado público alvo, começava o processo de cópia desses textos. Esse processo tinha a finalidade de ampliar o âmbito de influência desses textos e permitir que mais pessoas se beneficiassem desses escritos. Essas cópias manuscritas certamente apresentariam diferenças de texto em relação aos originais. Algumas cópias podiam apresentar um número significativo de diferenças; outras, um número bem reduzido.[3]

A palavra “crítica” deriva do grego κρίσις (krisis), que significa “julgar, avaliar, analisar, investigar, tomar uma decisão, solucionar um problema, tomar uma decisão em questões etc.” Esse é o papel da crítica textual. Ela trabalha em favor da confiabilidade do texto bíblico, com o propósito de assegurar que as palavras que lemos hoje correspondem da forma mais plena possível àquelas que os profetas, apóstolos e evangelistas escreveram.[4]

Apesar do grande número de variantes nos testemunhos textuais, a grande maioria diz respeito a questões de pouca ou nenhuma importância:

São variações na ordem relativa das palavras numa frase, no uso diferente de preposições, conjunções e advérbios, nas preposições que acompanham determinados verbos, do uso ou não do artigo diante de nomes próprios, ou simples alterações de natureza gramatical, muitas das quais sequer poderiam ser representadas numa tradução em língua portuguesa. Mas, infelizmente nem tudo é tão simples assim. Há também um bom número de variantes que surgiram por razões exegéticas, teológicas ou mesmo doutrinárias, o que faz do exercício da crítica textual muito mais que uma investigação histórica, mas uma busca da própria essência do ensino apostólico.[5]

Os tipos de variantes (alterações) investigados pela crítica textual podem ser classificados como acidentais e intencionais.[6]

As alterações acidentais compreendem cerca de 95% das variantes (no caso do Novo Testamento), estão relacionadas com a falibilidade dos copistas. São erros cometidos ao copiar um manuscrito para outro: “A ausência de espaço entre as palavras e sentenças, sinais de pontuação ou divisões no texto dava ensejo a muitos e diferentes erros de transcrição, ainda mais em face da rudimentariedade dos materiais de escrita, a insalubridade de alguns locais de trabalho e as limitações dos próprios copistas”.[7] Dentre algumas das causas desse tipo de erro, temos:[8]

  • Equívocos visuais: Acontecia quando os copistas (a) Confundiam algumas letras com outras de grafia semelhante; (b) Pulavam de uma palavra, frase ou parágrafo para outro devido a começos ou términos semelhantes, com a omissão das palavras intermediárias; (c) Repetiam erroneamente uma sílaba, palavra ou frase, ou parte de uma frase; (d) Omitiam indevidamente uma sílaba, palavra ou frase, ou parte de uma frase; (d) Faziam a transposição de fonemas no interior de um mesmo vocábulo ou a transposição de vocábulos numa mesma frase.
    • Equívocos auditivos: Os equívocos auditivos eram causados: (a) Por certas vogais e ditongos gregos serem pronunciados de maneira praticamente idêntica; (b) Pela diversidade de formas plurais do pronome pessoal de primeira e segunda pessoa.
    • Equívocos de memória: A falha de memória do escriba o levava a cometer erros que variavam entre a substituição de sinônimos, a inversão na sequência de palavras e a influência inconsciente de passagens paralelas.
    • Equívocos de julgamento: Ao se deparar com diversos comentários anotados à margem do manuscrito que lhe estivesse servindo de modelo para ser copiado, e não dispondo de outras cópias para comparação, o copista por vezes os incluía no texto julgando que de fato deveriam estar ali. A variante é considerada nesse caso acidental, visto que o copista não tivera a intenção de alterar o texto. Erros podiam ser também cometidos por uma completa falta de julgamento.

    Em se tratando das alterações intencionais feitas pelos copistas, elas são consideradas as mais importantes e difíceis de se corrigir através da crítica textual. Tais alterações resultam em grande escala do esforço de escribas e corretores em obter um texto melhor e mais correto:

    […] escribas pensantes eram mais perigosos que aqueles que meramente desejavam ser fiéis ao modelo que tinham diante de si. Embora pouca ou nenhuma evidência exista de que variantes heréticas ou destrutivas tinham sido deliberadamente produzidas, muitos copistas, indignados com os erros ortográficos, gramaticais, estilísticos ou de fatos históricos reais ou imaginários supostamente cometidos pelos copistas anteriores, não hesitavam em alterar seus textos pelas formas que julgavam mais adequadas. Às vezes, copistas posteriores podiam inclusive reintroduzir erros já previamente corrigidos.[9]

    Os tipos de alterações intencionais são:[10]

    • Harmonizações textuais: Eram feitas com o propósito de harmonizar passagens paralelas, cujas eventuais divergências representavam uma forte tentação aos escribas mais familiarizados com o texto bíblico.
      • Adaptações litúrgicas: Passagens, principalmente dos Evangelhos, podiam sofrer pequenas adaptações, às vezes a partir de expressões ou imagens extraídas da própria Escritura, para que pudessem ser utilizadas nos serviços de culto ou mesmo na devoção pessoal, e algumas destas alterações exerceram grande influência na transmissão do texto.
      • Correções ortográficas, gramaticais e estilísticas: Aconteciam devido a falta de padronização oficial e à influência de vários dialetos que afetavam principalmente nomes de pessoas e lugares, semitismos e solecismos presentes no texto, presença de palavras pouco conhecidas ou consideradas vulgares.
      • Correções históricas e geográficas: Na tentativa de harmonizar passagens aparentemente conflitantes do ponto de vista cronológico, geográfico, histórico etc., mudanças eram feitas pelos copistas.
      • Correções exegéticas e doutrinárias: Geralmente acontecia quando o escriba se deparava com passagens de difícil interpretação. Com frequência, os escribas tentavam simplificar-lhe o sentido, tornando-a mais exata, menos ofensiva ou menos obscura.
      • Interpolações de notas marginais e complementos naturais: O uso das margens dos manuscritos para correções, interpretações, reações pessoais e informações gerais quanto ao texto era uma prática bastante comum, como também o era a inclusão de tais elementos no próprio corpo do texto em cópias posteriores.
      • Interpolação de tradições: As interpolações de tradições autênticas acerca de Jesus e dos apóstolos que não foram originalmente registradas por nenhum escritor do Novo Testamento, se enquadram também entre as alterações intencionais.

      [1] FISCHER, Alexander Achilles. O texto do Antigo Testamento: edição reformulada da Introdução à Bíblia Hebraica de Ernst Würthwein. Tradução de Vilson Scholz. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 153.

      [2] TOV, Emanuel. Crítica textual da Bíblica hebraica. Tradução de Edson de Faria Francisco. Rio de Janeiro: bvbooks Editora, 2017, p. 1-2.

      [3] OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento: análise e avaliação do aparato crítico de “O Novo Testamento Grego”. Tradução de Vilson Scholz. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, p. xvi.

      [4] PAROCHI, Wilson. Origem e transmissão do texto do Novo Testamento. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012, p. xii.

      [5] Ibid., p. xv.

      [6] Ibid., p. 108-118. Para um aprofundamento sobre as questões aqui expostas, sugerimos consultar a bibliografia indicada nas citações.

      [7] PAROSCHI, Origem e transmissão do texto do Novo Testamento, ibid., p. 108.

      [8] Ibid., p. 108-111.

      [9] Ibid., p. 111-112.

      [10] Ibid., p. 112-118.

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