A política é um assunto bastante controverso no contexto evangélico brasileiro. Falamos aqui da política em seu aspecto partidário e governamental.[1] Ao longos dos anos a relação entre os evangélicos no Brasil e a política tem mudado, saindo do nível da demonização para o nível da busca pela apropriação do poder político.[2] Alguns seguimentos evangélicos se aproximaram mais, enquanto outros mantiveram certa distância. Isso reflete o quanto ainda estamos longe da unanimidade de opinião acerca da relação ideal entre o cristão e a política (nível pessoal) e entre a igreja e a política (nível institucional). Política é de Deus, do diabo ou do homem? Política é um tema bíblico ou secular? Deve-se promover a alienação ou a conscientização política na igreja? Igrejas devem ter ou não representantes políticos? A igreja deve ser ideologicamente de direita, de centro ou de esquerda (ou não deve abraçar uma ideologia política)? Estas e outras questões serão abordadas ao longo das nossa publicações aqui no Facebook e em meu blog altairgermano.com.br.

Ao lermos e estudarmos a Bíblia Sagrada, é possível perceber que “política” é um tema que está presente do Gênesis ao Apocalipse. Onde há governo, há política. Como bem colocou Cavalcanti:

Deus governa, de modo absoluto, o universo. Antes da queda, a terra era, de modo particular, uma teocracia: era Deus quem governava. A sua vontade se fazia “na terra como no céu”. Ao homem, representado por Adão, Ele havia delegado atribuições específicas para representá-lo, como mordomo, administrador. O governo do homem sobre a terra (Gn 1.28) não se contradizia com o governo de Deus, porque a mente do homem estava em sintonia com a de seu Criador. Pela ordem da criação não haveria na terra desigualdade social, exploração, guerra, mas harmonia e justiça. Seria uma terra sem estratificação social nem fronteiras nacionais. A terra de Deus era uma terra para os homens (humanidade), com todos nela trabalhando e dela se beneficiando, sem egoísmos privativistas. A liderança deste mundo era destinada, principalmente, a pessoa do sexo masculino, tendo a mulher, em dignidade, ativa participação cooperadora. A queda do homem transtorna toda a terra, abandonando-se a ordem da criação […].[3]

A ordem de Deus para o homem em relação à criação foi:

E Deus disse: — Façamos o ser humano à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os animais que rastejam pela terra. Assim Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: — Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e sujeitem-na. Tenham domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.[4]

O governo humano estava debaixo da bênção de Deus. O comentário da Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada diz:

[…] Já que o v. 26 relaciona a imagem de Deus ao exercício de dominar sobre todas as outras criaturas do mar, do céu e da terra, pode-se concluir que os seres humanos recebem autoridade para governar a Terra como representantes de Deus ou vice-regentes. […] Como Deus havia abençoado as criaturas do mar e do céu (v. 22), assim também ele abençoou a humanidade. […] O plano de criação de Deus é que toda a Terra seja povoada por aqueles que o conhecem e servem sabiamente, atuando como seus vice-regentes, ou representantes. […] O termo “sujeitar” (hebr. kabash) significa em outro trecho trazer um povo ou uma terra em sujeição para render serviço a quem o subjugou (Nm 32.22,29). Aqui a ideia é que o homem e a mulher devem fazer com que os recursos da terra sirvam de benefício para si mesmos, o que sugere que eles iriam analisar e desenvolver os recursos da terra para torná-los úteis à população em geral. […] Como representantes de Deus, os seres humanos devem governar sobre todos os seres vivos na Terra. Essas ordens não são, no entanto, um mandado para explorar a terra e as suas criaturas a fim de satisfazer a ganância humana, pois o fato de que Adão e Eva eram “à imagem de Deus” (1.27) implica a expectativa de Deus[5] de que os seres humanos usufruíssem da terra com sabedoria e a governassem com o mesmo senso de responsabilidade e cuidado que ele tem para com toda a sua criação.[6]

Para Scofield, Gênesis 1.28 é a carta magna divina para todo o progresso científico e material. O homem recebeu ordens de Deus para “sujeitar”, ou seja, adquirir conhecimento e ter domínio sobre o seu ambiente material, com o propósito de que esse ambiente estivesse a seu serviço.[7] Na Bíblia de Estudo Pentecostal lemos o seguinte comentário:

O homem e a mulher receberam o encargo de serem frutíferos e de dominarem a terra e o reino animal. (1) Foram criados para constituírem lares para a família. Esse propósito de Deus, declarado na criação, indica que Ele volta-se para a família que o serve e que a criação de filhos é algo de máxima prioridade no mundo (Ef 5.21; Tt 2.4,5). (2) Deus esperava deles que lhe dedicassem todas as coisas da terra e que as administrassem de modo a glorificar a Deus e cumprir o propósito divino (Sl 8.6-8; Hb 2.7-9). (3) O futuro da terra passou a depender deles. Quando pecaram, trouxeram ruína, fracasso e sofrimento à criação de Deus (3.14-24; Rm 18.19-22). (4) É obra exclusiva de Jesus Cristo restaurar a terra à sua posição e função perfeitas, na sua vinda, no fim desta era (Rm 8.19-25; 1 Co 15.24-28; Hb 2.5-8; Ap 21.1).[8]

Para Calvino, o fato de Deus delegar autoridade ao homem sobre todas as criaturas viventes, manifesta a dignidade pela qual o Senhor decretara honrar ao homem.[9] O domínio sobre a Terra definiu a relação singular do homem com a Criação na condição de representante de Deus. Subjugar se relaciona com uma ordenação produtiva da terra e de seus habitantes, a fim de produzir suas riquezas e realizar os propósitos divinos.[10] Na condição de representante de Deus, o homem deve dominar para o bem dos seus súditos. O Senhor não autoriza qualquer tipo de abuso de poder.[11] As ordens de Deus, do hebraico ḵiḇšuhā (sujeitai, “pisar em”) e rəḏū (dominai, “esmagar com os pés”), não devem ser interpretadas no sentido de oprimir, mas da incumbência de uma grande tarefa.[12]

Com a queda, tudo na terra foi afetado pelo pecado (Rm 8.19-23), inclusive a política (o governo humano). Conforme Kidner: “Sem direção, o coro da criação só pode ranger em dissonância”.[13] Para Ryrie: “Como representante de Deus, o homem deve dominar a Terra. Mas, ao pecar, perdeu a capacidade de fazê-lo corretamente. […] e que reconquistará no futuro reino milenar, por causa da morte de Cristo pelo pecado”.[14]

Andrade considera que se homem houvesse obedecido a Deus, toda a terra seria um lugar belo e sustentável, onde a descendência de Adão poderia desfrutar de todo o bem que o Senhor proveu. Governando bem o planeta, não haverá miseráveis em lugar algum. Tal realidade será demonstrada pelo Senhor Jesus, quando o reino milenar for estabelecido.[15] Desde o Éden, Deus ofereceu esperança de que o Messias viria para restaurar todas as coisas.[16] A ordem criada desta terra foi amaldiçoada na queda, mas será restaurada na regeneração.[17]

A continuidade da narrativa do Gênesis nos mostra os desdobramentos de um governo humano corrompido pelo pecado, que tenta se estabelecer independente de Deus, com base na autossuficiência e autonomia (Gn 11.1-8). Contudo, a graça e a misericórdia do Senhor se revelam na história, com a implementação de um plano de redenção e restauração que está em pleno andamento, envolvendo diversos modelos de sistemas de governo, e que culminará com o governo de Jesus no seu reino milenar (Dn 2.31-45; Ap 20.1-6).


[1] Para um maior conhecimento da política em suas dimensões mais amplas, favor consultar a bibliografia aqui citada e as sugestões de leitura que faremos.

[2] Sugestões de leitura: Evangélicos na política brasileira (Paul Freston, Encontrão Editora), Religião e política, sim; Igreja e Estado, não: os evangélicos e a participação na política (Paul Freston, Ultimato), Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobe cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil (Saulo Baptista, Instituto Metodista/Anna Blume), Entre a fé e a política: participação dos evangélicos no processo político-eleitoral (Valmir Nascimento, CPAD) e Pentecostalismo na esfera pública: uma análise a partir do jornal Mensageiro da Paz (Osiel Lourenço, Editora Santorini).

[3] CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e política. Viçosa, MG: Ultimato, 2004, p. 21.

[4] Gênesis 1.26-28. (Nova Almeida Atualizada, NAA)

[5] Prefiro a expressão “vontade de Deus” em vez de “expectativa de Deus”, visto que “expectativa” passa a ideia de incerteza em relação ao futuro, e Deus conhece o futuro.

[6] Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018, p. 29,30.

[7] Bíblia de Estudo Scofield. São Paulo: Holy Bible, 2009, p. 3.

[8] STAMPS, Donald C. (E.). Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, p. 33,34.

[9] CALVINO, João. Gênesis. V. 1. Tradução de Valter Graciano Martins. Recife, 2018, p. 63.

[10] MACARTHUR, John. Comentário bíblico MacArthur: Gênesis a Apocalipse. Tradução de Eduardo Mano [et al]. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019, p. 10.

[11] WENHAM, G. J. Gênesis. In: CARSON, D. A [E.]. Comentário bíblico Vida Nova. Tradução de Carlos E. S. Lopes [et al]. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 102.

[12] ELLISON, H. L. Gênesis. In: BRUCE, F. F. (E.). Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. 2. ed. Tradução de Valdemar Kroker. São Paulo: Editora Vida, 2012, p. 122.

[13] KIDNER, Derek. Gênesis: introdução e comentário. Tradução de Odayr Olivetti. São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 68,69.

[14] RYRIE, Charles. A Bíblia de Estudo Anotada Expandida. São Paulo: Mundo Cristão; Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2007, p. 9, 1200.

[15] ANDRADE, Claudionor de. O começo de todas as coisas: estudos sobre o livro de Gênesis. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 38, 39.

[16] PATE, C. Marvin. Romanos: comentário expositivo. Tradução de Suzana Klassen e Vanderlei Ortigosa. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 174.

[17] Bíblia de Estudo Holman. Rio de Janeiro: CPAD, 2018, p. 1797.

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