Existe um entendimento equivocado de que ecumenismo é uma ideia e prática vivenciada apenas no contexto das relações entre igrejas. Através deste breve texto, demonstraremos que a atividade ecumênica está presente também no ambiente acadêmico-teológico, geralmente especificada como “cooperação acadêmica”, que faz parte de um processo que tem como objetivo avançar para âmbito institucional de todas as tradições cristãs, inclusive a pentecostal, visando promover transformações ou mudanças de mentalidade e atitude para com o pensamento e práticas ecumênicas.
O que é o ecumenismo? Uma resposta breve, mas bastante elucidativa é encontrada na Wikipedia:
Ecumenismo é o processo de busca pela união apesar das diferenças. O termo ecumênico provém da palavra grega οἰκουμένη (oikouméne), significa mundo habitado. Num sentido mais restrito, emprega-se o termo para os esforços em favor da unidade entre igrejas cristãs; num sentido lato, pode designar a busca da unidade entre as religiões. Antigamente, em teologia, definia-se ecumenismo como movimento que visaria à unificação das igrejas cristãs (católica, ortodoxa, luterana, anglicana e protestante). A definição atual, mais abrangente, considera como ecumenismo a aproximação, a cooperação, a busca fraterna da superação das divisões entre as diferentes igrejas cristãs.[1]
Como é possível observar, a definição atual de ecumenismo envolve “cooperação”, e não apenas “unificação” entre igrejas, como acontecia no conceito antigo. Quando diferentes igrejas (evangélicas e católicas) se unem num trabalho “cooperativo”, através de suas diversas instituições filiadas, como por exemplo as faculdades teológicas, isso caracteriza uma atividade ou prática ecumênica.
O conceito atual de ecumenismo, conforme acima descrito, é encontrado também em Congar:
É um movimento constituído por um conjunto de sentimentos, de ideias, de obras e instituições, de reuniões ou de conferências, de cerimônias, de manifestações e de publicações que tendem a preparar a reunião, não apenas dos cristãos, mas das diversas Igrejas hoje existentes, numa nova unidade. […] Na realidade o ecumenismo é um todo. […] É teológico e prático.[2]
Instituições que promovem reuniões, conferências e publicações com o objetivo de promover unidade entre evangélicos e católicos, como o caso de instituições de educação teológica, praticam o ecumenismo.
O ecumenismo em seu caráter acadêmico foi bem descrito por Alencar em sua obra “Ecumenismos & Pentecostalismos”, onde encontra-se a afirmação de que tal modalidade ecumênica pode efetuar mudanças imediatas nas estruturas religiosas, influenciando-as a longo prazo. O ecumenismo acadêmico, realizado por pesquisadores em espaços acadêmicos, segundo Alencar, goza de uma maior liberdade, pois é praticado sem a fiscalização teológica original, vigilância do bispo, sem as mesuras dogmáticas próprias de qualquer religião. Ecumênicos acadêmicos podem e devem assim falar com todos, e ouvir os mais diferentes, exóticos e inimagináveis expressões teológicas.[3] Alencar ainda afirma que: “Esse ecumenismo acadêmico ainda é pequeno, mas tem crescido, e com a produção já realizada pode, a meio e longo prazo, realizar alguma mudança de mentalidade no universo pentecostal”.[4] E ainda: “O uso de diferentes instâncias de atividades do ecumenismo eclesiástico é também uma prática do ecumenismo acadêmico […].[5]
Para Navarro, o ecumenismo se trata de uma experiência inédita, original, sem precedentes na história do cristianismo, onde as instituições são confrontadas em diálogo, para que reconheçam que nem tudo está dito e experimento na Igreja e na teologia. O ecumenismo implica uma vida teologal.[6]
Ao discorrer sobre as fases históricas ou estágios do ecumenismo, Navarro fala de sua institucionalização. Segundo ele, a “instituição ecumênica”, produto de várias premissas, possui nos postos de direção “profetas” e “visionários”, que foram ali colocados pelos especialistas, as hierarquias e os teólogos. Dessa forma, desvinculando-se de sua carga utópica e social, o ecumenismo se confina mais estritamente nos limites eclesiais, se centrando em diálogos teológicos e doutrinais, dirigidos sempre a partir do topo das hierarquias eclesiásticas, gerando assim o “ecumenismo oficial”.[7]
Navarro também reconhece a existência daquilo que ele classifica como “ecumenismo doutrinal”, afirmando categoricamente que:
[…] é completamente inquestionável que o diálogo doutrinal está hoje no núcleo do movimento ecumênico. […] As comissões mistas de teólogos – representantes das diversas Igrejas no diálogo doutrinal – constituem a melhor prova de que as comunidades cristãs estão seriamente comprometidas com o movimento ecumênico.[8]
Para superar as complexidades, os problemas, as dificuldades e as barreiras doutrinais que o ecumenismo enfrenta, diz ainda Navarro: “Empenham-se também nisso certas faculdades de teologia, os departamentos ecumênicos de algumas universidades e os grupos de cristãos de base dedicados a criar as condições para que a unidade da Igreja seja sinal da unidade da humanidade”.[9]
Entre as questões doutrinárias a serem superadas na relação ecumênica entre católicos e evangélicos estariam: (a) as de ordem eclesiais, como o caso da validade das ordenações ao ministério que foram efetuadas pela imposição de mãos e pela oração do bispo, dentro da sucessão apostólica; (b) a perspectiva divergente do exercício do ministério como atividade sacerdotal sacrificial; (c) o primado universal do papa no contexto ecumênico; (d) o papel de Maria na história da salvação; e (e) a intercomunhão dos membros batizados nas diversas tradições cristãs e suas complexidades.[10]
Às questões acima, Elias Wolff acrescenta ainda as tendências proselitistas do movimento pentecostal como causa de dificuldades para uma sensibilidade ecumênica da teologia.[11]
Na busca pelo diálogo teológico oficial, os interlocutores do catolicismo romano listados por Navarro são:[12]
– Igrejas ortodoxas de rito bizantino e antigos orientais
– Comunhão anglicana
– Federação luterana mundial
– Aliança reformada mundial
– Conselho metodista mundial
– Movimento pentecostal
– Discípulos de Cristo
– Aliança batista mundial
– Conselho Ecumênico das Igrejas (CEI)
Em relação ao diálogo com pentecostais, afirma que o mesmo tem suas raízes nos contatos efetuados durante 1969-1970 por alguns membros de Igrejas pentecostais com o então Secretário Romano para a Unidade, destacando a figura do reverendo David Du Plessis, um dos observadores no Concílio Vaticano II.[13]
Após destacar avanços e proximidades entre o pentecostalismo e o ecumenismo no Brasil, Wolff afirma:
No campo da teologia é importante mostrar que é cada vez mais frequente evangélicos pentecostais realizarem estudos de graduação e de pós-graduação em instituições das igrejas tradicionais. E já são destaques algumas teses de mestrado e doutorado em teologia ou das ciências da religião defendidas por pentecostais em perspectiva de diálogo ecumênico e, inclusive inter-religioso. Isso é promissor para o movimento ecumênico e as iniciativas de diálogo das religiões no Brasil.[14]
Como é possível constatar à luz dos fatos aqui expostos, os eventos acadêmicos praticados por evangélicos e católicos em grupos ou instituições de educação teológica através de publicações, reuniões e conferências, chamadas às vezes por seus organizadores de seminários, encontros de cooperação acadêmica e congressos interinstitucional, é na realidade uma atividade ecumênica no sentido atual e real do termo. Os nomes dos eventos promovidos podem ser variados, mas a natureza e proposta ecumênicas dos mesmos permanecem inalteradas.
Como bem colocam Teixeira e Dias, o diálogo que ocorre nos intercâmbios teológicos, envolvendo especialistas e peritos das várias tradições religiosas, que visam, por exemplo, discutir, confrontar, aprofundar e enriquecer os respectivos patrimônios religiosos, e acrescento também, que visam tratar das mais diversas questões sociais, culturais etc., pressupõe certa “relativização” das próprias crenças, e o “deixar-se transformar pelo encontro.[15]
Um documento elaborado pelo Conselho Ecumênico das Igrejas, intitulado de “Formação Ecumênica”, destaca a importância de tal formação em seminários, faculdades de teologias e universidades católicas, onde os planos de estudo devem dar a dimensão ecumênica necessária em cada matéria, e prevejam um estudo específico do ecumenismo.[16] Não é por acaso, que sob tais orientações, as instituições teológicas católicas estão buscando ou aceitando proximidade e parceira com instituições teológicas evangélicas.
Ainda no contexto ecumênico-teológico, o documento “A Irrupção do Terceiro Mundo: desafio para a teologia”, produzido pela Associação ecumênica de teólogos do Terceiro Mundo (AETM), teve por finalidade congregar o maior número possível de teólogos do chamado Terceiro Mundo, de diferentes igrejas, capazes de repensar, partindo de seus próprios contextos de pobreza, a tarefa teológica, construindo uma hermenêutica capaz de unificar as aspirações das diferentes teologias intercontinentais.[17]
A relação entre ecumenismo acadêmico e ecumenismo eclesial é algo que por mais que se tente, não é possível desassociar uma atividade da outra.
Diante do aqui exposto, fica evidenciado que qualquer instituição evangélica que se aproxime de instituições ou de grupos católicos para atividades (reuniões, congressos, seminários, conferências etc.) acadêmicas “interinstitucionais” ou “cooperativas” (ou qualquer outro título que se use), estarão sim, envolvidas numa atividade ecumênica, e conscientes disso ou não, estarão cooperando com objetivos ecumênicos e inter-religiosos para além da instância e produção meramente intelectual-teológica.
As diversas tradições
cristãs evangélicas (pentecostais e não pentecostais), através de seus
estatutos, regimentos e documentos oficiais, possuem a sua posição sobre a
participação de seus membros e instituições em atividades de natureza ecumênica,
que devem ser consideradas e observadas.
[1] Ecumenismo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecumenismo, acesso em 11/5/2021.
[2] CONGAR, Y. Cristianos desunidos. Verbo Divino, Estella, 1967, p. 12 apud NAVARRO, Juan Bosch. Para compreender o ecumenismo. Tradução de Maria Stella Gonçalves e Adail Ubirajara Sobra. São Paulo: Loyola, 1995, p. 12,17.
[3] ALENCAR, Gedeon Freire. Ecumenismos & pentecostalismos: a relação entre o pescoço e a guilhotina? São Paulo: Editora Recriar, 2018, p. 27.
[4] Ibid., p. 150.
[5] Ibid., p. 28.
[6] NAVARRO, ibid., p. 13.
[7] Ibid., p. 16-18.
[8] Ibid., p. 19.
[9] Ibid., p. 161.
[10] Ibid., p. 161-179.
[11] WOLFF, Elias. Caminhos do ecumenismo no Brasil: história, teologia, pastoral. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paulinas: Paulus: São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 2018, p. 163.
[12] Ibid., p. 182.
[13] Ibid., p.189.
[14] WOLFF, ibid.,
[15] TEIXEIRA, Faustino; DIAS, Zwinglio Mota. Ecumenismo e diálogo inter-religioso: a arte possível. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2008, p. 152.
[16] NAVARRO, Juan Bosch. Dicionário de ecumenismo. Tradução de Ivo Montanhese. Aparecida, SP: Editora Santuário, p. 159,160.
[17] Ibid., p. 25-27.
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