A Teologia da Experiência e o Liberalismo Teológico de Friedrich Schleiermacher

O Liberalismo Teológico (ou Teologia Liberal) surgiu em meados do século XIX, na Alemanha, em meio às ideias de que a fé e a teologia cristã necessitavam de uma revisão à luz do conhecimento moderno. Um dos seus principais disseminadores foi o teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), através de sua ênfase no sentimento humano.[1]

Schleiermacher foi educado no pietismo morávio (1768-1834). Foi ordenado e pregou em Berlim (1796) antes de ensinar teologia em Halle (1804 e Berlim (1810). Suas principais obras são “Da Religião” (1799) e “A Fé Cristã” (1821-1822). Ele foi influenciado pelo pietismo, que enfatiza a devoção mais que a doutrina, e pelo romantismo, que incluía a crença no panteísmo em oposição ao teísmo, e pelo agnosticismo, seguindo Immanuel Kant (1724-1804), que enfatizava o prático mais que o teórico .[2] Para Schleiermacher, a base da religião não é existência divina, mas a experiência humana, a sede da religião é no “eu”, interior é a chave do exterior, o objeto da religião é o “Todo”, que muitos chamam de Deus, e a natureza da religião encontra-se no sentimento (senso, afeto) de dependência absoluta, que é descrito como a sensação de ser criatura, a consciência de ser dependente do “Todo”, ou a sensação de contingencial existencial. A religião é encontrada no sentimento, e a doutrina é apenas uma forma de sentimento, não sendo essencial para a experiência religiosa, e pouco necessária para expressá-la. Dentre as mais sérias críticas a Scheleimacher, considerado como o pai do liberalismo moderno, estão: (a) a forma experimental de panteísmo; (b) sua aceitação da epistemologia kantiana; (c) a disjunção entre experiência e doutrina; a afirmação de que a verdade não se aplica à religião; (d) a redução da teologia a mera antropologia; e a aceitação da alta crítica negativa da Bíblia.[3]

Não tenho dúvidas de que a experiência tem um papel fundamental na fé cristã. Autores como Craig S. Keener afirmam isso, de uma forma bastante equilibrada:

A espiritualidade pentecostal sempre leu as Escrituras experiencialmente […]. Ninguém se aproxima de um texto sem pressuposições, geralmente moldadas por instrução ou experiências passadas […]. Experiências contemporâneas, no entanto, podem nos ajudar a ouvir o texto bíblico de maneiras que ressoam seus valores […]. Experiências semelhantes às das Escrituras muitas vezes tornam as Escrituras mais críveis ou próximas a nós do que elas parecem para aqueles que não têm essas experiências […]. A experiência a muito tempo tem moldado a interpretação.[4]

As Escrituras não devem ser adaptadas às experiências pessoais (eisegese), pelo contrário, as experiências pessoais é que devem submeter-se à interpretação ortodoxa e ao juízo das Escrituras. A experiência tem o seu próprio lugar, não devendo ser menosprezada e nem supervalorizada. A experiência pessoal é passiva de revisão e pode ser questionada, mas as Escrituras, a divina e inspirada Palavra, jamais. As Escrituras permanecem para sempre:[5] Conforme Siqueira: “Os teólogos pentecostais não interpretam a Bíblia desconsiderando as ferramentas da exegese e nem colocam a experiência pessoal como balizador doutrinário”.[6]

Os nossos sentimentos e experiências não devem ser usados como teste da verdade em detrimento da própria Bíblia, que é a única e infalível Palavra de Deus: “Sentimentos e experiências são falíveis, pois estão relacionados à natureza do ser humano que mesmo regenerado pelo Espírito ainda continua sendo falho”.[7]

Além do contexto pentecostal, dentro do contexto evangélico reformado a experiência possui o seu devido lugar e valor, e isso apesar das divergências entre cessacionistas e continuacionistas. Ao tratar sobre experiência e hermenêutica, Anglada afirma:

A experiência pessoal do intérprete, seja ela espiritual ou fenomenológica, não deve ser desprezada, mas não pode ser considerada como referencial fidedigno de interpretação. As experiências pessoais devem ser interpretadas à luz das Escrituras e não o contrário. Esse é um dos grandes perigos na interpretação bíblica. Nossos sentimentos, impressões, convicções subjetivas e inclusive a nossa apreensão e compreensão dos fenômenos externos não são infalíveis. […] A interpretação de passagens bíblicas relacionadas aos dons espirituais não é muitas vezes indevidamente condicionada à experiência pessoal do intérprete? Por outro lado, não são os milagres descartados por intérpretes racionalistas, porque transcendem à experiência fenomenológica deles? As experiências têm, portanto, apenas um papel secundário na interpretação das Escrituras. Elas devem ser levadas em consideração somente como um elemento adicional na avaliação da autenticidade da nossa interpretação. […] as experiências humanas precisam ser submetidas à autoridade das Escrituras.[8]

As observações de Anglada são bastante pertinentes. São as Escrituras que legitimam as experiências. As ênfases extremas no subjetivismo espiritual e no racionalismo natural são próprios da teologia liberal.

O termo “liberal”, como hoje é entendido, se aplica a um teólogo interessado na reformulação da Sã Doutrina em resposta à cultura contemporânea.[9] A crítica ortodoxa ao liberalismo teológico destaca, dentre alguns, os seguintes pontos:[10]

– O movimento apresenta a tendência de pôr uma ênfase exagerada sobre a ideia de uma experiência religiosa humana universal. Tal noção é considerada pela ortodoxia como vaga, mal definida e impossível de ser publicamente analisada e avaliada.

– Os críticos do liberalismo teológico o veem como um movimento que dá ênfase excessiva sobre criações culturais passageiras, o que resulta na aparência de um movimento indiscriminadamente controlado por uma agenda secular.

– Afirma-se que o liberalismo teológico está pronto a sacrificar doutrinas distintamente cristãs e centrais, na tentativa de tornar o cristianismo aceitável aos olhos da cultura contemporânea (pós-moderna, subjetivista, relativista, pluralista, etc.).

Algumas das principais características doutrinárias da teologia liberal ou liberalismo teológico, tanto em sua vertente subjetivista/experiencial, quanto em sua vertente objetivista/racionalista, são:

– O conceito de revelação: As Escrituras atestam uma revelação divina sobrenatural. O Iluminismo, ao contrário, adotou uma postura cada vez mais crítica em relação à ideia de uma revelação sobrenatural.[11]

– O pecado original: A doutrina do pecado original foi duramente criticada, pois a afirmação de que a natureza humana é imperfeita e corrompida poderia encorajar o pessimismo em relação à capacidade do ser humano de promover o desenvolvimento social e político. A rejeição do pecado original foi algo considerado de suma importância no pensamento iluminista e consequente na Teologia Liberal, visto que a doutrina cristã de redenção se baseava no pressuposto de que a humanidade necessitava ser liberta das cadeias do pecado original.[12]

– A relativização da doutrina: Toda teologia é rejeitada, sendo promovido um ceticismo total (ou um subjetivismo extremo), onde “se todas as crenças são igualmente verdadeiras, e algumas delas contradizem as outras, então todas são igualmente falsas, ou pelo menos incertas. Todas as crenças se tornam igualmente verdadeiras e baseadas na experiência. Diferente disso, para a ortodoxia cristã uma crença ou sistema de doutrina não é simplesmente a expressão de uma experiência, pelo contrário, é o estabelecimento de fatos nos quais a experiência se fundamenta.[13] A experiência tem o seu devido lugar e valor, mas não o lugar central em questões de fé e conduta, lugar este ocupado pelas Sagradas Escrituras.

– A paternidade geral de Deus: Diferente da pregação moderna da “paternidade geral de Deus”, o Evangelho faz menção a algo totalmente diferente, onde no Novo Testamento é afirmado que tal paternidade diz respeito apenas aos que foram trazidos para a família da fé (Jo 1.12,13).

– A rejeição da doutrina da inspiração plena da Bíblia:  O surgimento da abordagem crítica às Escrituras criou a tese de que a Bíblia era uma obra de muitas mãos, que às vezes demonstrava uma certa contradição interna e estava aberta, como qualquer ou peça da literatura, exatamente ao mesmo método de análise e interpretação textual, o que cooperou mais ainda para o enfraquecimento do conceito de “revelação sobrenatural”.[14] O cristianismo ortodoxo, ao contrário dos liberais, encontra na Bíblia a própria Palavra de Deus, inspirada, inerrante, completa e infalível (Sl 19.7; Jo 10.35; 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.21).[15]

– A negação dos milagres e eventos sobrenaturais registrados nas Escrituras: A teologia liberal afirma que a existência dos milagres destruiria os fundamentos da ciência, pois os milagres introduziriam um elemento de arbitrariedade e inexplicabilidade no curso do mundo. Com isso, foram rejeitadas às crenças, por exemplo, da concepção sobrenatural de Maria e da ressurreição de Jesus. O pensamento ortodoxo cristão evangélico, ao contrário, acredita nos milagres dos tempos bíblicos e na atualidade dos mesmos.[16]

– A Igreja: A teologia liberal ensina que que todos os seres humanos, em qualquer lugar, não importam suas origens e crenças, são irmãos e parte da “fraternidade do homem”. Para a ortodoxia cristã, a verdadeira fraternidade é a fraternidade dos redimidos.[17] A verdadeira Igreja é formada por todos aqueles que Deus chamou para fora do mundo, tendo sido resgatados da vã maneira de viver por intermédio do precioso sangue de Cristo (1 Pe 1.18,19).[18]

– A identidade de Jesus Cristo e seu significado: Foi criada a tese de que havia uma grande discrepância entre o Jesus real da história e o Jesus do Novo Testamento. Para os teólogos liberais, por trás do Jesus apresentado no Novo Testamento escondia-se uma mera figura humana, um grande sábio e mestre de preceitos morais, e não um redentor sobrenatural e divino. Desde então se iniciou uma busca nos círculos liberais pelo “Jesus histórico”, mais real e mais crível racionalmente. A tese ortodoxa de que Jesus era Deus encarnado não é admissível na Teologia Liberal.[19] Sobre o significado da morte de Jesus, o Liberalismo Teológico a compreende como um mero exemplo moral supremo de sacrifício e dedicação, que pretendia inspirar em seus seguidores um comportamento semelhante.[20]

Como bem especifica McGrath:

O objetivo da teologia é a interpretação da experiência. A teologia equipara-se a uma rede que podemos lançar sobre a experiência, a fim de capturar seu sentido. A experiência é vista como algo que deve ser interpretado e não como algo que possua por si só capacidade de interpretação. […] A perspectiva de Lutero considera a experiência como algo de importância vital para a teologia; sem ela, a teologia é empobrecida e deficiente, como uma concha oca, vazia, que espera por sua pérola. Contudo, a experiência por si só não pode ser tida como fonte teológica confiável; ela deve ser interpretada e revista pela teologia. […] A teologia interpreta nossos sentimentos, até mesmo a ponto de contradizê-los, quando são enganosos. Ela insiste na fidelidade de Deus e na realidade da esperança da ressurreição – mesmo nas ocasiões em que a experiência parece sugerir o contrário. Portanto, a teologia fornece-nos um apoio para que possamos compreender as contradições da experiência. Pode parecer que Deus está ausente, distante desse mundo – a teologia, contudo, insiste no fato de que essa experiência é temporária, falha e que não podemos nos deixar levar pelas aparências.[21]

Toda a tentativa contemporânea de colocar a subjetividade da experiência acima da autoridade das Escrituras, é filha e herdeira do pensamento e da teologia liberal de Schleiermacher.

A teologia pentecostal clássica, longe de qualquer aproximação com a teologia da experiência ensinada por Schleiermacher, é uma teologia bíblica e ortodoxa, fundamentada na Palavra e inflamada pelo fogo do Espírito!


[1] MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, ibid., p. 138.

[2] GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. Tradução de Lailah de Noronha. São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 804-806.

[3] GEISLER, ibid., p. 804-806.

[4] KEENER, A hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes, ibid., p. 68-70.

[5] OLIVEIRA, Raimundo de. Como estudar e interpretar a Bíblia: um método que permite à Bíblia falar por si mesma. Rio de Janeiro: CPAD, 1986, p. 98,99.

[6] SIQUEIRA, Gutierres. O Espírito e a palavra: fundamentos, características e contribuições da hermenêutica pentecostal. Rio de Janeiro: 2019, p. 107.       

[7] MENDES, Jonas J.; CARMO, Valdeci do. Hermenêutica: uma introdução à interpretação bíblica. Cuiabá, MS: Editora Palavra Fiel, 2021, p. 72.

[8] ANGLADA, Paulo. Introdução à hermenêutica reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e métodos linguísticos. Ananindeua, PA: Knox Publicações, 2016, p. 227,228.

[9] MCGRATH, ibid., p. 140.

[10] MCGRATH, ibid., p. 141.

[11] MCGRATH, ibid., p. 130.

[12] MACGRATH, ibid., p. 130,131.

[13] MACHEN, John Gresham. Cristianismo e liberalismo. Tradução de Caio Cesar Dias Peres. São Paulo: Shedd Publicações, 2012, p. 22,23.

[14] MACGRATH, ibid., p. 131.

[15] Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 25,26.

[16] Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil, ibid., p. 49, 62,63, 165-168, 171-174, 179-182, 185, 196.

[17] MACHEN, ibid., p. 133.

[18] Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil, ibid., p. 120.

[19] MCGRATH, ibid., p 132.

[20] MCGRATH, ibid., p. 131,132.

[21] MCGRATH, ibid., p. 236,237.

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