A relação entre a Teologia Liberal e a Teologia da Libertação é clara e aberta. O ataque de ambas à inspiração e/ou historicidade das Escrituras Sagradas, as une de forma definitiva e inequívoca.

Para a Teologia Liberal, com o surgimento da abordagem crítica às Escrituras criou-se a tese de que a Bíblia era uma obra de muitas mãos, que às vezes demonstrava uma certa contradição interna e estava aberta, como qualquer ou peça da literatura, exatamente ao mesmo método de análise e interpretação textual, o que cooperou mais ainda para o enfraquecimento do conceito de “revelação sobrenatural”.[1]

O teólogo liberal moderno não apenas rejeita a doutrina da inspiração plena mas também o respeito pela Bíblia, como seria apropriado com qualquer outro livro confiável: “Pelo que a doutrina cristã da Bíblia é substituída? Onde está, na visão liberal, a posição de autoridade na religião?”[2]

A sistematização da Teologia da Libertação deve muito à publicação da obra Teologia da Libertação: Perspectivas, escrita por Gustavo Gutiérrez, publicada originalmente no Peru, em 1971. A teologia é por ele compreendida como reflexão, atitude crítica que tem compromisso primeiramente com a caridade ou serviço: “A teologia vem depois, é ato segundo”.[3] Dessa forma a teologia não gera a ação pastoral, sendo antes reflexão sobre ela.[4] E ainda:

[…] “momento segundo”, precedido pela práxis de libertação. É o que mais tarde se denomina “passo zero”, “ato primeiro” ou “momento pré-teológico”, que pressupõe o engajamento ou “a experiência de Deus no pobre” por parte do teólogo, porquanto se trata de uma teologia que toma a práxis[5] não como tema ou objeto, mas como lugar epistêmico. Sem esta “síntese viva com a prática viva”, o teólogo não reúne as condições epistemológicas adequadas para fazer Teologia da Libertação.[6]

Assim como Gutiérrez, os irmãos Boff também afirmam que o primeiro passo para a Teologia é pré-teológico. Trata-se de viver o compromisso da fé, e de participar, de alguma forma, no processo libertador, de estar comprometido com os oprimidos. É preciso que o teólogo tenha primeiro um conhecimento direto da realidade da opressão/libertação, e isso através de um engajamento desinteressado e solidário com os pobres.[7]

Conforme Mondin, Gutiérrez mostra que, a partir de baixo, tomar como ponto de partida a práxis revolucionária, compreender esta práxis (situação concreta) com o subsídio de todos os instrumentos que as várias ciências humanas oferece, não significaria desenvolver uma ideologia cristã revolucionária, pois a contribuição da fé para a revolução não teria caráter ideológico, pois, segundo ele, tal “ideologia do alto” brota de uma teologia que tenta extrair das Sagradas Escrituras uma teologia da revolução para depois deduzir consequências práticas para a práxis revolucionária.[8]

A Teologia da Libertação não é uma reflexão (ou teorização) que procura justificar, com base na Bíblia, uma opção revolucionária, é sim, uma reflexão teológica que nasce, vive e se constrói no contexto da prática e envolvimento consciente (militância) com o processo revolucionário da libertação.[9]

O irmão e antigo parceiro de Leonardo Boff na Teologia da Libertação, Clodovis Boff, aqui citado, e já dissidente dessa teologia, escreve:

É um fato que a TdL se entende como a “reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra”, como diz Gutiérrez. Quer ser, mais concretamente, “ato II” em relação ao “ato I”, que seria a prática dos cristãos. […] Entretanto, tudo isso se choca frontalmente não só com a grande tradição teológica, mas com a natureza mesma da teologia, que, como o nome já diz, tem Deus (revelado, por suposto), não só como seu tema próprio, mas também como sua perspectiva primeira. E se a teologia trata também de qualquer outra realidade, trata-a sempre na perspectiva de Deus (ou da Revelação, ou ainda da fé). A TdL, entretanto, na medida em que inverte essa ordem, “vira a teologia de pernas para o ar”, como tinha observado o arguto metodológico da “escola de Milão”, Giuseppe Colombo, no auge da TdL, em meados dos anos 80.[10]

O cristianismo ortodoxo, ao contrário dos liberais, encontra na Bíblia a própria Palavra de Deus, inspirada, inerrante, completa e infalível (Sl 19.7; Jo 10.35; 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.21), o momento primeiro de todo o fazer teológico.[11]

A colaboração de Boff para uma sistematização da Teologia da Libertação é feita, principalmente, na cristologia apresentada em sua obra Jesus Cristo Libertador (1972, Vozes). Ferreira e Myatt fizeram um esboço preciso de parte dessa cristologia liberal da Teologia da Libertação, destacando os seguintes aspectos:[12]

– Ênfase na pessoa de Jesus como homem.

– Interpretação de Cristo segundo as categorias existenciais.

– Sob o filtro dos pressupostos do método histórico-crítico o Cristo da fé deve ser distinto do Jesus histórico.

– Negação de diversos eventos e falas registrados nos evangelhos, inclusive que Jesus não teria dito que era Filho de Deus em Mateus 27.43: “A massa zombadora ao pé da cruz coloca na boca de Jesus a firmação ‘eu sou Filho de Deus’ (Mt 27,43). Mas isso é um acréscimo claro do evangelista Mateus”.[13]

– Passagens e profecias sobre a morte e ressurreição de Jesus parecem não ter sidos ditas por ele, visto que pressupõem já a Paixão e a Páscoa até em seus detalhes. Tais passagens teriam sido um acréscimo (trabalho cristológico) da comunidade de fé para explicar o sentido redentor da morte de Cristo: “Já temos referido anteriormente: essas passagens e profecias sobre a morte e ressurreição parece não terem sido ditas por Jesus, porque elas pressupõem já a Paixão e a Páscoa até em seus detalhes. Isso teria sido trabalho cristológico da comunidade da fé para explicar o sentido redentor da morte de Cristo”.[14]

– A confissão de Jesus diante do sinédrio (Mc 14.61) trata-se apenas da expressão de uma confissão de fé da comunidade primitiva, e confissão de Pedro (Mc 8.29): “Tu és o Cristo”, parece não ter sido um fato histórico: “A confissão de Jesus diante do sinédrio (Mc 14,61) exprime a fé da comunidade primitiva em Jesus como Cristo e o único e verdadeiro libertador esperado. A confissão de Pedro (Mc 8,29): ‘Tu és o Cristo”, nos termos como vem expressa, parece não ter sido um fato histórico”.[15]

– Alguns relatos contidos nos evangelhos, como os da infância de Jesus, não residem tanto em fatos, tratando-se antes de narrativas com roupagem plástica e teológica: “[…] o sentido teológico dos relatos da infância não reside tanto em narrar fatos do nascimento de Jesus mas através da roupagem de narrações plásticas e teológicas em anunciar para os ouvintes dos anos 80-90 d.C. quem é e o que é para a comunidade dos fieis Jesus de Nazaré”.[16]

– A interpretação correta da vida de Jesus começa com a desmitologização do texto: “Quem quiser salvaguardar a todo custo a historicidade de cada cena dos relatos natalinos, acaba perdendo a mensagem intencionada por seus autores inspirados e por fim situa-se fora da atmosfera evangélica criada por São Lucas e São Mateus, onde a preocupação não é se houve ou não estrela dos reis magos, se aparecem ou não anjos em Belém, mas sim o significado religioso do Pequeno que está para ser recebido por nós, não numa fria manjedoura, mas no calor de nossos corações, cheios de fé. Mas que faremos com os mitos depois de desmitologizados? Eles estão aí sendo sempre representados no presépio e vividos na memória das crianças pequenas e grandes. Perderam seu valor? Se perderam seu valor histórico-factual talvez agora começam a ganhar seu verdadeiro significado religioso-antropológico”.[17]

No projeto cristológico de Boff, ao mesmo tempo em que ele rejeita como histórico muito do conteúdo dos evangelhos, ele atribui significado e importância à pessoa do Jesus histórico. Dessa forma, seguindo Rudolf Bultmann em sua demitologização dos evangelhos, Boff encontra na pessoa histórica de Jesus um modelo de libertação.[18]

A teologia da libertação e liberal de Boff continua tendo influência na teologia acadêmica atual, inclusive no contexto pentecostal.[19]


[1] MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 131.

[2] MACHEN, John Gresham. Cristianismo e liberalismo. Tradução de Caio Cesar Dias Peres. São Paulo: Shedd Publicações, 2012, p. 68.

[3] GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. 2. ed. Tradução de Jorge Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976, p. 24.

[4] GUTIÉRREZ, ibid., p. 24.

[5] Práxis é uma palavra com origem no termo em grego praxis que significa conduta ou ação. Corresponde a uma atividade prática em oposição à teoria.

[6] MÜLLER, Gerhard Ludwig; GUTIÉRREZ, Gustavo. Ao lado dos pobres: teologia da libertação. Tradução Paulo F. Valério. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 14.

[7] BOFF, Lenardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. 7. ed. Petropólis, RJ: Vozes, 1998, p. 42,42.

[8] MONDIN, B. Os teólogos da libertação. Tradução de Hugo Toschi. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, ibid., p. 70.

[9] MONDIN, ibid., p. 76.

[10] BOFF, Frei Clodovis Maria; ADORNO, Leandro Rasera (org.). A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação. Campinas, SP: Ecclesiae, 2023, p. 63,64.

[11] Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 25,26.

[12] FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 554,555.

[13] BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. 20. ed. Petrópolois: Vozes, 2009, p. 107.

[14] BOFF, ibid., p. 108.

[15] BOFF, ibid., p. 109.

[16] BOFF, ibid., p. 119.

[17] BOFF, ibid., p. 129.

[18] FERREIRA; MYATT, ibid., p. 574.

[19] FERREIRA; MYATT, ibid., p. 555.

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