Um dos aspectos mais controversos da Teologia da Libertação se relaciona com a análise que ela faz das causas da pobreza na América Latina, especialmente o uso que faz da análise social marxista para compreender tanto a situação quanto sua solução.
O princípio hermenêutico da Teologia da Libertação é a filosofia marxista. Uma nova interpretação da salvação cristã consiste essencialmente na libertação, sendo esta entendida não apenas no sentido individualista, como também social, histórico e intramundano. A libertação cristã deve libertar o indivíduos de toda forma de opressão: social, econômica e política. A estratégia para conseguir a libertação é a proposta por Marx, a luta de classe.[1]
A filosofia hermenêutica da Teologia da Libertação (e das temais teologias da libertação: Missão Integral, Feminista, Negra, Queer etc.) pode também ser associada à Hans Georg Gadamer (1900-2002) e Paul Ricoeur (1913-2005), ainda que nem sempre os referidos teóricos sejam citados por seus teólogos:
Gadamer descreveu o processo hermenêutico como uma fusão de horizontes na qual os dois horizontes (original e do intérprete) tem o mesmo valor, mas em certo sentido, o horizonte do intérprete pode ser considerado superior ao do texto, na medida em que dispões de toda uma história dos efeitos (da recepção) do texto que possibilita ao intérprete um volume de recursos que não estava à disposição do autor.[2]
Dentre os diversos tipos de abordagens que a filosofia hermenêutica de Gadamer produziu, ganha destaque a reader response, ou reação do leitor, assim definida por enfatizar o envolvimento do leitor na produção e na determinação do sentido de um texto:
Existem diversas variações da reader response, mas todas leem o texto a partir de uma agenda definida, via de regra, ideológica ou política. Intérpretes que seguem essa linha são chamados de “leitores ideológicos”, pois leem o texto deliberadamente a partir de sua agenda ideológica. Eles costumam apelar para os princípios de Gadamer para justificar sua leitura do texto sagrado. Os principais tipos são: teólogos da libertação, estudiosos feministas e teólogos afro-americanos.[3]
No caso da Teologia da Libertação e da Teologia da Missão Integral, os seus teólogos:
[…] defendem que o texto bíblico deve ser lido a partir das necessidades socioeconômicas do mundo em que os leitores vivem. Muitos utilizam as categorias da filosofia política do marxismo, nessa leitura. A ideia fundamental é que os pobres e oprimidos trazem ao texto o horizonte da sua experiência de opressão e pobreza, a qual determinará sua compreensão do texto sempre da ótica da libertação social. Conceitos como “pecado”, que são lidos e interpretados de uma forma pela classe média branca, será entendido de outra forma pelos marginalizados. Pecado é a injustiça social, as estruturas sociais injustas e opressoras, a fome e as crianças de rua, que vivem comendo lixo. “Redenção” não é um conceito espiritual e ético, mas a libertação dessas estruturas opressoras e a liberdade para o desenvolvimento social e financeiro. A vida que Jesus veio trazer é entendida como sendo, primariamente, qualidade de vida social; Jesus é o libertador da condição humana de opressão e miséria. Pecado é entendido em termos coletivos e sociais e não algo moral e individual. Ser cristão é identificar-se com os pobres e fazer uma opção pela luta deles.[4]
Outra designação dada à interpretação bíblica das teologias da libertação é hermenêutica contextual, termo derivado de um artigo escrito pelo pai da Teologia da Missão Integral (versão evangélica protestante da Teologia da Libertação), René Padilla, em 1980 (publicado no Brasil em 1984).[5]
Conforme análise de Zabatiero, uma mudança na interpretação bíblica proposta pela hermenêutica contextual envolve:
Nossa maneira de experimentar a realidade, que remete à suspeita ideológica. A experiência da realidade deve ser crítica. […] No vocabulário de Paulo freire, essa nova experiência da realidade se denomina de conscientização. […] Aplicar a suspeita ideológica a toda superestrutura e, em particular, à teologia. O objetivo é desmascarar as fontes e condições de manutenção da opressão e da injustiça social, possibilitando a tomada de uma consciência crítica e libertadora.[6]
Essa descrição da tarefa hermenêutica contextual ajudou a constituir a epistemologia da Teologia da Libertação (e das demais teologias da libertação), o que provocou uma reviravolta no modo de fazer teologia, e isso mediante um abandono da mediação filosófica normativa do tomismo no catolicismo e através da adoção de um instrumental sociológico (marxista) como ferramenta metodológica para a exegese e para a teologia.[7]
É ainda possível encontrar na produção teológica das teologias da libertação, como já mencionado, as ideias de Paul Ricoeur, presentes em sua Hermenêutica da Suspeita (ou da desconfiança). Em sua obra Freud and Philosophy (1970), Ricoeur admite abertamente a influência que Marx, Nietzche e Freud, tiveram em seu pensamento: “Eles os considera ‘mestres da suspeita’ pois cada um deles, em sua área, procurou desmascarar, desmistificar e expor a realidade, partindo do fato de que a religião era uma máscara para ocultar outros interesses não declarados nos seus textos sagrados”. O pensamento de Ricoeur, que defende que a interação do leitor com o texto deve permanecer “aberta”, ou seja, sem jamais fechar o sentido do texto, exerceu influência sobre Juan Segundo (1925-1996), teólogo uruguaio, que baseou sua teologia da libertação na hermenêutica da suspeita.[8]
Conforme Oliveira:
A hermenêutica da suspeita é um exercício que confronta interpretações conservadoras; desconstrói paradigmas androcêntricos e patriarcais dos textos bíblicos e os reconstrói com referenciais libertadores; pergunta pela ideologia que envolve o texto, os protótipos e estereótipos; pergunta pelo tipo de sociedade, pelas relações de poder entre homens e mulheres, das mulheres entre si, dos homens entre si. [9]
Ricoeur entende, segundo uma abordagem hermenêutica orientada para o texto, que devido à natureza da escrita, o texto bíblico revela ao intérprete um mundo possível (o mundo do texto); o intérprete pode entrar nesse mundo e apropriar-se das possibilidades que ele oferece. Ao acontecer isso, o significado do texto é atualizado no entendimento do intérprete. Dessa forma, aquilo que é entendido ou apropriado, então, não é necessariamente o significado pretendido ou a situação histórica do autor ou dos leitores originais, mas o texto em si. Tal perspectiva de Ricoeur está presente de várias maneiras na fusão de horizontes de Gadamer.[10]
Mesmo com algumas críticas e reservas em relação ao marxismo, os teólogos da libertação não abrem mão de algumas das suas perspectivas hermenêuticas, sociais e econômicas.
[1] MONDIN, B. Os teólogos da libertação. Tradução de Hugo Toschi. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 34.
[2] ZABATIERO, Julio. Hermenêutica contextual. São Paulo: Garimpo Editorial, 2017, p. 15.
[3] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 231.
[4] LOPES, ibid., p. 231.
[5] ZABATIERO, ibid., p. 22.
[6] ZABATIERO, ibid., p. 24.
[7] ZABATIERO, ibid., p. 24,25.
[8] LOPES, ibid., p. 236.
[9] OLIVEIRA, Elizabete C. P. de. Teologia feminista e poder. In: Encontros de padres casados do Brasil, 5, Salvador, 2006, 1-8, apud FURLIN, ibid., p. 95.
[10] DOCKERY, David S. Hermenêutica contemporânea: à luz da igreja primitiva. Tradução de Álvaro Hattnher. São Paulo: Editora Vida, 2005, p. 166.
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