O Pacto de Lausanne foi um documento elaborado durante o Congresso Mundial de Evangelização, realizado na cidade de Laussane, Suíça, em 1974, com a participação de representantes de mais de 150 países. Líderes de influência mundial como os pastores Billy Graham e John Stott se fizeram presentes de maneira muito significativa e atuante. A grande influência de René Padilha no evento e na elaboração do seu documento, ele que é um dos principais líderes do movimento da Missão Integral, foi notória e decisiva.

Apesar de não ter sido muito difundido no meio pentecostal clássico brasileiro, diferente do que aconteceu em outros segmentos evangélicos, dele participou, por exemplo, o pastor Alcebíades Pereira de Vasconcelos, um dos grandes líderes na história das Assembleias de Deus no Brasil. É possível que muitos assembleianos brasileiros que estão lendo este post, nunca tenham ouvido falar, ou não se interessaram em saber mais sobre este Congresso e Pacto.

O Pacto de Laussane, além de reafirmar alguns fundamentos e convicções teológicas, foi também considerado como um chamado à igreja para a reflexão e prática evangelística, tarefa esta tida como urgente e inacabada.

A responsabilidade social da igreja evangélica também ganhou destaque em Laussane, e uma vez reconhecida a sua negligência nesta área, foi orientada ao envolvimento sócio-político, e ao combate e denúncia de toda forma de alienação, opressão e discriminação.

A prioridade da evangelização é claramente descrita no documento:

Acreditamos que o evangelho são as boas novas de Deus para todo o mundo, e por sua graça, decidimo-nos a obedecer ao mandamento de Cristo de proclamá-lo a toda a humanidade e fazer discípulos de todas as nações. […] o evangelho continua sendo um tesouro precioso. À tarefa de tornar esse tesouro conhecido, no poder do Espírito Santo, desejamos dedicar-nos novamente. […] Proclamar Jesus como “o Salvador do mundo” não é afirmar que todos os homens, automaticamente, ou ao final de tudo, serão salvos; e muito menos que todas as religiões ofereçam salvação em Cristo. Trata-se antes de proclamar o amor de Deus por um mundo de pecadores e convidar todos os homens a se entregarem a ele como Salvador e Senhor no sincero compromisso pessoal de arrependimento e fé. Jesus Cristo foi exaltado sobre todo e qualquer nome. Anelamos pelo dia em que todo joelho se dobrará diante dele e toda língua o confessará como Senhor. […] Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como Senhor e Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito a todos os que se arrependem e creem. […] Os resultados da evangelização incluem a obediência a Cristo, o ingresso em sua igreja e um serviço responsável no mundo. […] Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo rapidamente. Deus está levantando das igrejas mais jovens um grande e novo recurso para a evangelização mundial, demonstrando assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo de Cristo. Todas as igrejas, portando, devem perguntar a Deus, e a si próprias, o que deveriam estar fazendo tanto para alcançar suas próprias áreas como para enviar missionários a outras partes do mundo. Deve ser permanente o processo de reavaliação da nossa responsabilidade e atuação missionária. Cremos que estamos empenhados num permanente conflito espiritual com os principados e potestades do mal, que querem destruir a igreja e frustrar sua tarefa de evangelização mundial. Sabemos da necessidade de nos revestirmos da armadura de Deus e combater esta batalha com as armas espirituais da verdade e da oração. Pois percebemos a atividade no nosso inimigo, não somente nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela em falsos evangelhos que torcem as Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus. […] Portanto, à luz desta nossa fé e resolução, firmamos um pacto solene com Deus, bem como uns com os outros, de orar, planejar e trabalhar juntos pela evangelização de todo o mundo. Instamos com outros para que se juntem a nós. Que Deus nos ajude por sua graça e para a sua glória a sermos fiéis a este Pacto! Amém. Aleluia![1]

Percebe-se no texto acima, que o “serviço responsável ao mundo” (ação que visa o imanente, o social) é entendido como resultado da evangelização (ação que visa o transcendente, o espiritual), e não como a própria evangelização. Há uma clara distinção e ordem de prioridades entre as duas coisa.

Sobre a responsabilidade social da igreja, lemos:

Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar mas também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.[2]

Mais uma vez, a distinção entre evangelização e ação social fica evidente, pois embora sendo ambos parte do nosso dever, a reconciliação com o homem não é reconciliação com Deus, “nem ação social evangelização”, nem a libertação política salvação.

Ao citar o documento de Grand Rapids (1982), resultado de uma consulta sobre o tema realizada pelo Grupo de Trabalho Teológico do Comitê de Continuidade de Lausanne em colaboração com a Comissão de Teologia da Aliança Evangélica Mundial, Padilla  escreve acerca da definição da relação entre a evangelização e a ação social:

Em primeiro lugar, a ação social cristã é uma consequência da evangelização […]. Em segundo lugar, a ação social é uma ponte para a evangelização […]. Em terceiro lugar, é um companheiro da evangelização e se une a ela na missão como um cônjuge no casamento, como uma lâmina com a outra numa tesoura, como uma asa com a outra num avião ou num pássaro.[3]

Para dar sustentação à Teologia da Missão Integral (TMI), o que estava claro e cristalino até então em termos de necessidades e prioridades da igreja no Pacto de Lousanne foi distorcido ou desconstruído com argumentos equivocados ou falhos. Segundo Padilla:[4]

1. “À primeira vista, esta maneira de entender a prioridade da evangelização parece refletir simplesmente a convicção cristã de que a necessidade humana mais ampla e mais profunda é uma vida plena por meios do evangelho de Jesus Cristo”. E não seria?

2. As interpretações de Padilla sobre o documento de Gran Rapids são no mínimo confusas. Num primeiro momento ele afirma que o documento: “admite que a alternativa entre evangelização e responsabilidade social é ‘em grande medida conceitual’; que na prática, cada situação determina a prioridade e as duas (evangelização e responsabilidade social) são, na verdade, inseparáveis […]”. Alega ainda, que a união entre as duas (num casamento) torna “óbvio que a prioridade da evangelização mencionada no pacto não significa que a evangelização deva ser considerada mais importante que a sua companheira em todo momento e em todo lugar. Se fosse assim, algo estaria mal no casamento”. Dessa forma, Padilla faz a sua interpretação pessoal daquilo que estava muito claro no pacto de Lausanne, e tudo isso para adequá-lo ou conformá-lo às suas ideias e convicções teológicas. Outrossim, que disse que num casamento (além dos progressistas) não há hierarquia e ordem funcional entre os cônjuges (1 Co 11.3; Ef 5.22-24)?

3. Num segundo momento, ao se referir ao documento de Grand Rapids, Padilla afirma que: “Uma análise mais cuidadosa do relatório, no entanto, mostra que, com a posição adotada sobre o tema que a convocasse, a Consulta de Grand Rapids não alcançou totalmente seu objetivo de superar o individualismo entre a evangelização e a responsabilidade social”.

4. Sem meias palavras, e deixando de lado as ambiguidades argumentativas, Padilla conclui que: “o casamento que a FTL (Fraternidade Teológica Latino-americana) propôs e continua propondo, em contraste com o consumado na Consulta de Grand Rapids, é o que une a palavra e a ação, a fé e as obras, a justificação e a luta pela justiça social como cônjuges em ‘uma só carne’. A partir desse ponto de vista, não faz nenhum sentido falar de ‘prioridade da evangelização!’”.

A TMI de René Padilla e de seus seguidores foi assim construída sobre o fundamento arenoso (e atualmente ideológico) do “igualitarismo” entre evangelização e responsabilidade social, se distanciando definitivamente e radicalmente da proposta inicial do Pacto de Lausanne, e do próprio Evangelho de Jesus.

Usando as palavras de Adorno em relação aos rumos que tomou a Teologia da Libertação (TdL) na América Latina, esse nivelamento de prioridades, essa historização, imanentização, ressignificação e inversão radical (ou parcial) da teologia buscou superar o tradicional binômio sobrenatural-natural, transcendência-imanência, divino-humano, espiritual-carnal etc.[5] O centro de gravidade eclesial e doutrinário (e missiológico) foi deslocado do espiritual para o social, e a “conversão social” tomou gradativamente a dianteira sobre a “conversão espiritual” (ou no mínimo equiparou-se a ela).[6]

A pobreza espiritual foi colocada pelos teólogos da TMI no mesmo patamar da pobreza social, e a salvação (ou libertação) espiritual no mesmo nível da salvação (ou libertação) política. Dessa forma, as prioridades e responsabilidades da missão da igreja foram fundidas e confundidas por esse vento de doutrina (Ef 4.11-14).


[1] Pacto de Lausane. Disponível em: https://lausanne.org/pt-br/statement/pacto-de-lausanne?fbclid=IwAR2_Jl5RudlIwWBxNQ1laDjQGPXCAJAlIu_CYd6a1Z705PO6vvQ7hACVvRc_aem_Afud6FBaTcD3Hu6d-OInoY9T6gpolTTMPHvSPFjjud7axdZ5EljJlaGP7WtBrMlppJRON-mpsLBgP1FqQ6BIQLie, acesso em 15/4/2024.

[2] Ibid.

[3] PADILLA, C. René. Missão Integral: o reino de Deus e a igreja. Viçosa, MG: Ultimato, 2014, p. 24,25.

[4] PADILLA, ibid., p. 25,26.

[5] ADORNO, Leandro Rasera (Org.). A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação. Campinas, SP: Ecclesiae, 2023, p. 11.

[6] BOFF, Clodovis. O declínio atual da Igreja Católica. In: ADORNO, ibid., p. 25,29.

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