Até o século 19 o Textus Receptus (Texto Recebido), nome dado a partir de 1633 ao Novo Testamento grego editado por Erasmo de Roterdã (1466-1536), foi a base das principais traduções do Novo Testamento para a língua alemã (Bíblia de Lutero), inglesa (King James), portuguesa (João Ferreira de Almeida), etc. A versão da Bíblia Almeida Revista e Corrigida teve o seu Novo Testamento traduzido principalmente do Textus Receptus, que por sua vez se baseia em manuscritos gregos bizantinos, que formam na atualidade a maioria dos manuscritos gregos antigos disponíveis (90-95%).

No século 19 teve início uma guerra aberta contra o Textus Receptus e a tradição textual bizantina, e isso em razão de alguns setores da academia decidir que os melhores manuscritos gregos eram de origem alexandrina, representados principalmente pelos Códices Vaticano e Sinaítico, e isso devido a antiguidade dos mesmos. Contra tal posição da academia, se opuseram nomes como o de John W. Burgon (Last Twelve Verses of the Gospel According to S. Mark, James Parker and Co., 1871), John A. Broadus (Commentary of the Gospel of Mark, American Baptist Publication Society, 1905), William R. Farmer (The Last Twelve Verses of Mark, Cambridge University Press, 1974), Zane C. Hodges e Artur Farstad (The Greek New Testament According to the Majority Text, Thomas Nelson Publisheres, 1985), Wilbur N. Pickering (Deus Preservou o Seu Texto: a preservação divina do texto do Novo Testamento, Terceira Edição, Clube de Autores, 2024), Paulo Anglada (Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o Final do Evangelho de Marcos, Ananindeua: Knox Publicações, 2014) e Wilbur. N. Pickering e Marcelo Freitas (Família 35: Texto Original do Novo Testamento Exposição de Evidências, Simplíssimo, 2020).

Nas batalhas contra o Textus Receptus e a tradição textual bizantina, Karl Lacmann (1793-1851), um professor de filologia clássica em Berlim, declarou: “Fora com o Textus Receptus, que é de origem mais recente, e de volta ao texto da Igreja antiga do quarto século!”.[1] Conforme os adversários do Textus Receptus e da tradição textual bizantina:

Para tornar o Textus Receptus obsoleto no mundo acadêmico, tudo que precisou foram as edições de Tischendorf e de Westcott e Hort. […] Mas a derrota final só veio em 1898, quando o Novum Testamentum Graece de Eberhard Nestle (1851-1913) foi publicado pela Sociedade Bíblica de Württemberg, em Stutgart. […] Isto significou a supressão do Textus Receptus também na vida da Igreja e das escolas. […] Isto significou a derrota final do Textus Receptus […]. Não é possível reverter o curso da história.[2]

Foi no contexto dessa guerra “irreversível” contra o Textus Receptus, que o Vaticano (Igreja Católica Romana) firmou um acordo em 1968 com as United Bibles Societies (Sociedades Bíblicas Unidas), através do documento Guiding Principles for Interconfessional Cooperation in Translating the Bible (Princípios Orientadores para Cooperação Interconfessional na Tradução da Bíblia),[3] acordo esse ratificado em 1987, através do documento Guidelines for Interconfessional Cooperation in Translating the Bible: The New Revised Edition Rome (Diretrizes para Cooperação Interconfessional na Tradução da Bíblia: A Nova Edição Revisada Roma).[4] Por ocasião da reafirmação desse acordo, o Papa João Paulo II fez um pronunciamento parabenizando a decisão.[5]

Sobre o texto crítico das United Bible Societies e NESTLE-ALAND, Kurt Aland e Barbara Aland afirmam que:

[…] o novo texto se tornou uma realidade e, com a sus difusão pelas Sociedades Bíblicas Unidas e pelas entidades correspondentes dentro da Igreja Católica Romana (fato inconcebível até pouco tempo atrás), se tornou, em pouco tempo, o texto aceito e usado em universidades e igrejas, no estudo particular e no ensino público. Isto se aplica também aos projetos de tradução para línguas modernas. O acordo firmado entre o Vaticano e as Sociedades Bíblicas Unidas (no documento Guiding Principles, em 1968), que foi ratificado em 1987 (com o documento Guidelines), prevê o uso exclusivo deste texto em projetos de tradução.[6]

Entre as diretrizes estabelecidas para a tradução da Bíblia com base no acordo firmado e ratificado entre o Vaticano e as Sociedades Bíblicas Unidas (representada no Brasil pela Sociedade Bíblica do Brasil), damos destaque aqui àquelas que dizem respeito ao Novo Testamento. São elas:

– As equipes de tradução devem basear seu trabalho na edição crítica do Novo Testamento grego publicada pela United Bible Societies (O Novo Testamento Grego), que é em si um esforço conjunto de acadêmicos representando a Igreja Católica Romana e outros grupos cristãos. O Novo Testamento Grego é a base de tradução da versão Nova Almeida Atualizada (antiga Almeida Revista e Atualizada), que diverge em diversas passagens e versículos da versão Almeida Revista e Corrigida (ARC), quer seja omitindo palavras, mudando a tradução ou colocando textos entre colchetes (não considerando esses textos parte do original):

Diversos textos no Novo Testamento aparecem entre colchetes. Trata-se de material que se encontra no aparato crítico das edições mais recentes do texto grego, não sendo, portanto, considerado parte do original. Esse material foi mantido no texto da tradução, ainda que entre colchetes, para que o leitor não estranhasse a falta de alguns versículos, pensando inclusive que poderia ter havido uma falha na impressão. (Peculiaridades da Nova Almeida Atualizada, ponto 20, p. VII)

Na apresentação de O Novo Testamento Grego, lemos algo semelhante:

Os colchetes duplos dentro do texto indicam que as passagens ali incluídas, geralmente trechos mais extensos, reconhecidamente não fazem parte do texto original, mas foram acrescentados ao texto bíblico num dos primeiros estágios da tradição textual. Tais passagens estão no texto, ainda que entre colchetes duplos, devido à sua antiguidade e ao uso que tradicionalmente se tem feito delas na Igreja cristã. (SBB, 2019, p. xvii)

– Embora um texto crítico deva formar a base de qualquer tradução adequada, o acordo reconhece que em algumas situações certos grupos podem exigir que algumas passagens do Novo Testamento encontradas na tradição bizantina (como amplamente representadas pelo Textus Receptus) sejam observadas na tradução. Quando este for o caso, tal material pode aparecer em notas de rodapé com um marcador apropriado no texto. Esse marcador corresponde na versão Nova Almeida Atualizada (NAA) aos colchetes colocados, conforme citação acima.

Para que os leitores tenham uma ideia das diferenças textuais entre O Novo Testamento Grego (base da tradução da NAA) e o Textus Receptus (base da tradução da ARC), observem o quadro comparativo que publiquei em meu blog.[7] Na maioria das passagens onde divergem, os dois textos são incompatíveis.

A versão Almeida Revista e Corrigida (ARC) é a mais utilizada nas Assembleias de Deus no Brasil, mas se encontra ameaçada pelos rumos da crítica textual moderna e da academia, que não aceitam várias de suas passagens e palavras como parte do original do Novo Testamento, visto que foram traduzidas do Textus Receptus.

O acordo firmado e reafirmado entre o Vaticano (Igreja Católica Romana) e as Sociedades Bíblicas Unidas, foi mais um passo dado nessa “guerra” declarada contra o Textus Receptus e a tradição textual bizantina, e consequentemente contra parte do Novo Testamento da versão Almeida Revista e Corrigida (ARC).

Pr. Altair Germano


[1] ALAND, Kurt; ALAND, Barbara. O texto do Novo Testamento: introdução às edições científicas do Novo Testamento Grego bem como à teoria e prática da moderna crítica textual. Tradução de Vilson Scholz. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 11,12.

[2] Ibid., p. 18,19.

[3] Disponível em: https://translation.bible/wp-content/uploads/2024/06/1968-guiding-principles-for-interconfessional-cooperation-in-translating-the-bible.pdf, acesso em 10/12/2024.

[4] Disponível em: Guidelines for Interconfessional Cooperation in Translating the Bible, acesso em 10/12/2024.

[5] Disponível em: Presentation of the new “Guidelines for interconfessional cooperation in translating the Bible” (November 16, 1987) | John Paul II, acesso em 10/12/2024.

[6] ALAND; ALAND, ibid., p. 35.

[7] Disponível em: https://altairgermano.com.br/quadro-comparativo-de-diferencas-e-incompatibilidades-textuais-entre-a-almeida-revista-e-corrigida-arc-e-a-nova-almeida-atualizada-naa/, acesso em 10/12/2024.

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