A Teologia da Missão Integral é considerada nos círculos evangélicos ortodoxos como a versão evangélica da Teologia da Libertação, visto a sua ênfase numa “teologia contextual”, na pobreza e opressão econômica capitalista, exemplificada principalmente pelo modelo de crescimento econômico dos Estados Unidos,[1] e na ideia de uma “preferência” ou “preocupação especial” de Jesus em relação aos pobres, temas norteadores da Teologia da Libertação.[2]

Um dos aspectos mais controversos da Teologia da Libertação se relaciona com a análise que ela faz das causas da pobreza na América Latina, especialmente o uso que faz da análise social marxista para compreender tanto a situação quanto sua solução. Os seus idealizadores afirmam que o problema decorre da dependência econômica imposta pela grandes empresas multinacionais, aliada à violência institucionalizada contra o pobre, perpetuada pelas oligarquias encasteladas no poder e pelos regimes militares, que cooperam com as multinacionais em troca de apoio. Conforme os teólogos da libertação, para aliviar a opressão, é necessária uma ação que promova uma ruptura radical com o status quo.

Ao tratar de “opção preferencial pelos pobres”, os teólogos da libertação afirmam que Deus, que ama a todas as pessoas, se identifica com o pobre e fica ao seu lado contra todo opressor que queria explorá-lo ou desumanizá-lo. Em razão disso, na atual situação revolucionária, a igreja deve se solidária com o oprimido.[3] Neste sentido: “Antes de fazer Teologia é preciso fazer libertação. O primeiro passo para a Teologia é pré-teológico. Trata-se de viver o compromisso da fé, em nosso caso, de participar, de algum modo, no processo libertador, de estar comprometido com os oprimidos. […] Importa, pois, ter primeiro um conhecimento direto da realidade da opressão/libertação através de um engajamento desinteressado e solidário com os pobres.[4]

A ortodoxia não coloca a opressão/exploração socioeconômica como ação prioritária da igreja, em detrimento de ações que visem a libertação do ser humano da opressão espiritual, compreendendo antes, que a opressão socioeconômica é resultado da opressão espiritual, e que uma vez liberto desta opressão pelo poder da mensagem salvadora, regeneradora e libertadora do Evangelho de Jesus Cristo, o ser humano contribuirá segundo o modelo bíblico da sã doutrina para a promoção da verdadeira justiça: “A mudança social bíblica é um processo de dentro para fora que começa com uma transformação interna. […] É aí que o processo de transformação social genuína começa.”[5]

A Teologia da Missão Integral encontrou na Teologia da Libertação o seu alicerce intelectual.[6] Uma prova disso é o seu discurso sobre “Teologia Contextual”. Gustavo Gutiérrez, um dos articuladores e importante teólogo da Teologia da Libertação afirmou que as teologias da Europa e América do Norte são simplesmente inadequadas para a situação social da América Latina. Segundo ele:

Aqui, a fé é vivida pelos pobres deste mundo. Aqui, a reflexão teológica, que busca uma expressão própria, não tem a intenção de ser um paliativo para esse sofrimento e se recusa a integrar-se à teologia dominante. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a teologia está consciente daquilo que a separa das teologias dominantes, quer conservadoras ou progressistas.[7]

René Padilla, considerado como o pai da Missão Integral, de forma semelhante, e fazendo alusão a Gustavo Gutiérrez, escreveu:

Com mais exatidão, diríamos que a igreja na América Latina é uma igreja sem reflexão teológica própria. […] A análise de todos os aspectos de nossa realidade eclesiástica mostrará que nossa “dependência teológica” é tão real e tão forte como a dependência econômica que caracteriza os países do Terceiro Mundo. É bem verdade que os últimos viram o surgimento de um movimento teológico na América Latina que transbordou as fronteiras deste continente. Gustavo Gutiérrez, Hugo Assmann, Juan Luis Segundo e José Miranda (todos eles autores católico-romanos) são nomes já familiares a muitos leitores na Europa e na América do Norte. […] Uma fotocópia de alguma teologia elaborada na Europa ou na América do Norte jamais poderá satisfazer as necessidades teológicas da igreja no Terceiro Mundo. […] [8]

Padilla, na busca de justificativas para a criação de uma teologia contextual protestante, argumentou que os teólogos católico-romanos tinham um volume de produção literária pequeno, e um impacto muito limitado para alterar o quadro da dependência teológica das igrejas na América Latina. Afirmou ainda: “Que mesmo que um setor das igrejas protestantes, na falta de uma teologia própria com a qual encarar a tarefa de contextualizar o evangelho, tenha abraçado sua teologia, é altamente duvidoso que esta chegue a transcender amplamente o reduzido grupo de seus seguidores católico-romanos”.[9]

Cabe destacar aqui, que um dos poucos teólogos protestantes que aderiram à Teologia da Libertação foi o metodista José Míguez Bonino, da Argentina, que se tornou o principal defensor do uso cristão da análise social marxista, e foi autor dos livros “Os Cristãos e os Marxistas” e “Fazendo Teologia numa Situação Revolucionária”, sendo esse último a sua principal obra, onde ele apresenta as bases para a Teologia da Libertação, chamando a igreja à superar sua atitude de privatização ou identificação com o sistema e envolver-se com a luta revolucionária em favor dos pobres, e isso adotando e adaptando o marxismo para a teologia em seu contexto latino-americano. Ele foi bastante firme em suas asserções sobre a contextualidade da teologia.[10] Bonino é citado também pelos irmãos Leonardo e Clodovis Boff como um dos desbravadores protestantes da Teologia da Libertação, estando entre os primeiros que rasgaram o horizonte deste modo de fazer teologia, e que possibilitaram os ulteriores desdobramentos.[11]

A pobreza é considerada o segundo tema principal da Teologia da Libertação, visto que conforme os seus teólogos, é a característica mais importante da sociedade latino-americana, e que é endêmica, profunda e imposta.[12] Temos aqui mais um alinhamento entre as duas teologias contextuais, o que nos leva ao terceiro tema central e em comum entre a Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral, que é a ideia de uma “preferência” ou “preocupação especial” de Jesus pelos pobres.[13]

Na Teologia da Libertação, a evangelização “não se relaciona com o anúncio do plano divino de salvação nem com o ensinamento das Escrituras Sagradas (a sã doutrina) como sendo todo o conselho de Deus para a nossa salvação eterna, mas com a práxis liberacionista (ou libertadora), que contém uma interpretação política e ativista”.[14] A defendida e proclamada pelos adeptos da Teologia da Libertação “opção preferencial pelos pobres” é antibíblica e desonesta:

É antibíblica por duas razões: discrimina as pessoas que têm o mesmo valor diante de Deus, e adota a falsa premissa de que o fim justifica os meios. É desonesta porque fecha os olhos às recentes lições dos movimentos de libertação em todo o mundo, que em vez de libertar escravizam ainda mais as pessoas. […] Aliás, os defensores da “opção preferencial pelos pobres nunca falam dos verdadeiros milhões de pobres – realmente pobres em todos os sentidos – que gemem escravizados sob os regimes totalitários marxistas em várias parte do mundo.[15]

É obvio que toda sorte de opressão e injustiça, inclusive a pobreza, deve ser profeticamente (não politicamente ou ideologicamente) denunciada pela igreja de Jesus. Tanto o capitalismo quanto o socialismo já se revelaram como sistemas opressivos, cada um com o seu jeito próprio e peculiar de opressão. Acontece, que o combate à pobreza não é a prioridade da mensagem nem da prática da igreja, o que não significa que a igreja não deva ter preocupação alguma com a condição dos pobres. O Novo Testamento está repleto, como já visto, de exemplos de ações da igreja em favor dos pobres e necessitados.

Que Jesus se preocupou com os pobres não temos dúvidas, contudo, quando lemos algumas das passagens bíblicas onde Jesus faz alusão aos pobres, eles não são citados sozinhos, antes, são associados com aqueles que sofrem e são oprimidos por alguma outra situação e condição específica. Na sinagoga de Nazaré, associada à evangelização aos pobres, está a proclamação de liberdade aos cativos, a restauração de vista aos cegos e a libertação dos oprimidos, e essas últimas condições não são exclusivas dos que vivem em situação de pobreza, nem envolvem apenas fatores socioeconômicos.

Tanto a Teologia da Libertação (TL), quanto a Teologia da Missão Integral (TMI) são teologias progressistas. O pressuposto das teologias progressistas e ideologizadas (libertação, missão integral, feminista, LGBT+, negra, indígena etc.) é que o problema da injustiça é resultado do sistema opressor controlado por machos, brancos, ricos e heteronormativos, e não do pecado (resultado da Queda) presente no coração do homem.

A solução proposta pelo progressismo ideológico e teológico é a revolução (tomada e derrubada das estruturas  de poder), e não a conversão através da pregação do Evangelho.

O objetivo último das teologias progressistas é a libertação das vítimas, enquanto o objetivo último da teologia ortodoxa é a glória de Deus.

A salvação progressista é social e cultural, enquanto a salvação ortodoxa é espiritual. Como já vimos, a salvação espiritual promove a salvação social e cultural.

Não devemos fechar os olhos e silenciar diante das injustiças e opressões (espirituais e sociais), mas devemos percebê-las pelas lentes das Escrituras e da ortodoxia cristã, e não das ideologias.


[1] PADILLA, C. René. Missão integral: o reino de Deus e a igreja. Tradução de Emil Albert Sobottka e Wagner Guimarães. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014, p. 129, 151-153, 162-164, 167.

[2] Ibid., p. 196-204.

[3] MILLER, Ed. L.; GRENZ, J. Teologias contemporâneas. Tradução de Antivan G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 171-173.

[4] BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer teologia da libertação. 7 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998, p. 42,42.

[5] ALLEN, Scott David. Por que a justiça social não é a justiça bíblica: um apelo urgente aos cristãos em tempos de crise social. Tradução de A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2022, p. 101.

[6] LEITE, Lucas Ferreira; LAMBERT, Jean Marie. A cruz e a maçã: ou o mundo entre cristianismo e globalismo. Goiana, GO: Ed. dos Autores, 2021, p. 497.

[7] GUTIÉRREZ, Gustavo. The power of the poor in history. Maryknoll, NT: Orbis, 1983, p. 205 apud GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. Tradução de Suzana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 257.

[8] PADILLA, ibid., p. 129,137.

[9] PADILLA, ibid., p. 129.

[10] GRENZ; OLSON, ibid., p. 254-257.

[11] BOFF; Leonardo; BOFF, Clodovis, ibid., p. 114.

[12] Ibid., p. 258.

[13] Uma perspectiva pentecostal clássica sobre o problema da pobreza pode ser encontrada em: ALMEIDA, Abraão de. Teologia contemporânea: a influência das correntes teológicas e filosóficas na Igreja. Rio de Janeiro: 2016, p. 257-270.

[14] ALMEIDA, ibid., p. 243.

[15] Ibid., p. 267.

Para enviar seu comentário, preencha os campos abaixo:

Deixe um comentário

*

Seja o primeiro a comentar!