A Graça Preveniente

A graça, do grego charis, pode ser definida como o benevolente e imerecido favor de Deus, que oferece e possibilita, por meio da fé em Cristo, a salvação a todos os homens (Tt 2.11). O livre-arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar qualquer bem verdadeiro e espiritual sem a graça: “A respeito da graça e do livre-arbítrio, isto é o que ensino, a respeito das Escrituras e do consenso ortodoxo: o livre-arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar qualquer bem verdadeiro e espiritual, sem graça. […] Esta graça vai antes, acompanha e segue; instiga, auxilia, opera o que queremos, e coopera, para que não queiramos em vão. Ela evita tentações, auxilia e concede socorro em meio às tentações, sustenta o homem contra a carne, o mundo e Satanás, e, nesse grande conflito, concede vitória ao ser humano. Ela levanta outra vez os que são vencidos e os que estão caídos, firmando-os e dando a eles nova força, além de fazer com que sejam mais cuidadosos. Esta graça inicia a salvação, promovendo-a, aperfeiçoando-a e consumando-a”.[1]

De acordo com Efésios 2.5,6, o pecador está morto, e nessa condição não pode ajudar em nada. Ele precisa da graça, e com isso não tem do que se gloriar quanto a sua salvação.[2] Graça preveniente se refere ao amor de Deus em ação, que toma a iniciativa em relação ao homem caído, e não somente no sentido de propiciar a salvação, mas também no sentido de habilitá-lo a recebê-la  e atraí-lo a ela, concedendo-lhe assim a possibilidade de corresponder livremente com arrependimento e fé quando Deus o atrai a si. O livre-arbítrio para as coisas de Deus é resgatado ou liberto pela graça preveniente (At 16.14; 1 Co 15.10; 2 Co 3.5; Tt 2.11).[3] A graça é para todos (Jo 1.9; 12.32; 1 Tm 4.10; Tt 2.11), mas pode ser resistida (Gn 4.6,7; Dt 30.19; Js 24.15; 1 Rs 18.21; Is 1.19,20; Sl 119.30; Mt 23.37; Lc 7.30; Jo 1.12; 6.51; At 7.51; 10.43; 2 Co 6.1; Hb 12.5 ss.).[4]

Em João 6.44 o termo “trouxer”, do grego elkō, pode ter o sentido de “atrair”.[5] A graça antecede a fé. Não somos salvos pela fé, mas “pela graça mediante a fé” (Ef 2.8). Nesse sentido, a fé deve ser entendida como um ato de submissão, entrega, confiança e aceitação dessa salvação propiciada e operada unicamente pela graça divina.[6] Em suma: “há uma graça pré-regeneradora, capacitadora, que é exercida sobre a pessoa depravada, cega e pecadora cativa, e opera pela Palavra de Deus e pela obra do Espírito de Deus”.[7]

A diferença fundamental entre o arminianismo clássico e o arminianismo-wesleyano acerca do entendimento sobre a graça preveniente (ou preventiva), é que no primeiro a graça preveniente está disponível universalmente, mas é efetivada nas pessoas apenas através da pregação do Evangelho (revelação especial) ou do toque do Espírito Santo no coração através da revelação geral, enquanto que no segundo a graça preveniente é universal e já foi efetivada sobre todos os homens, de maneira que todos os homens já tem o seu livre-arbítrio restaurado.[8]

O pentecostalismo clássico assembleiano brasileiro concebe, diferentemente do Calvinismo[9] e da tradição monergista,[10] que Deus não salva ou condena o homem à parte de suas escolhas, ou seja, o pentecostalismo clássico assembleiano está alinhado com a perspectiva sinergista[11] da salvação, inserindo-se assim historicamente dentro da tradição Arminiana:[12] Para Andrade: “Esta teologia, que acabaria por influenciar diversos seguimentos evangélicos, entre os quais o pentecostalismo, surgiu como enérgica reação à teologia predestinacionista de João Calvino”.[13] Nesse sentido, afirma Gonçalves: “As Assembleias de Deus, por acreditarem  que os homens podem aceitar ou rejeitar a oferta da graça, estão inseridas dentro da tradição sinergista. As Assembleias de Deus, tanto na sua vertente escandinava como americana, estão inseridas dentro da tradição arminiana”.[14] Sobre isso, escreveu o missionário e teólogo assembleiano Lawrence Olson: “Em torno do assunto da eleição têm surgido duas escolas de pensamento: os calvinistas, que seguem os pensamentos do grande reformador João Calvino e os arminianos, que seguem os pensamentos de Jacó Armínio, outro teólogo holandês. […] os metodistas, episcopais e luteranos acompanham Armínio. Nós, das Assembleias de Deus, também somos da opinião de Armínio.”[15] Alves observa que: “Embora a Declaração de Fé das Assembleias de Deus não afirme categoricamente ser de linha teológica arminiana, a Soteriologia sistematizada por Jacó Armínio no século XVII está presente em todo o texto do capítulo 10. […] Ou seja, mesmo que todos os elementos da teologia de Armínio, como por exemplo, o batismo de infantes, não sejam reproduzidos (ou adotados) pela Declaração de Fé das Assembleias de Deus, a Soteriologia sistematizada por Armínio torna-se a base da Soteriologia assembleiana”.[16]

Quanto à doutrina da salvação, afirma ainda Gonçalves: “Observamos que a graça de Deus é o principal pilar sobre a qual todos os outros se alicerçam”.[17]

Graça, maravilhosa graça!


[1] ARMÍNIO, Jacó. As Obras de Armínio. V. 2. Tradução de Degmar Ribas. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 406.

[2] GILBERTO, Antonio. A doutrina da Salvação. In: GILBERTO, Antonio (E.). Teologia Sistemática Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, p. 351.

[3] DANIEL, Silas. Arminianismo: a mecânica da salvação. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 367.

[4] Ibid., p. 375.

[5] STRONG, James. Dicionário Strong de palabras griegas del Nuevo Testamento. In: Nueva concordância Strong exhaustiva de la Biblia. Nashville, TN: Miami, FL: Editorial Caribe: 2002, p. 28. Ver também: ROBERTSON, A. T. Comentário griego del Nuelvo Testamento: obra completa. Barcelona, España: Editorial CLIE, 2003, p. 220, e ainda: VINCENT: estudo no vocabulário grego do Novo Testamento. V. 2. Tradução de Lena Aranha. Rio de Janeiro: CPAD, 2013, p. 124.

[6] DANIEL, ibid., p. 380.

[7] PICIRILLI, Robert E. Livre arbítrio revisitado: uma resposta respeitosa a Lutero, Calvino e Edwards. Tradução de Wellington Carvalho Mariano. Cuiabá, MS: Palavra Fiel, 2019, p. 127.

[8] DANIEL, ibid., p. 385.

[9] O Calvinismo é o sistema teológico protestante exposto por João Calvino (1509-1564) e os seus seguidores, que enfatiza no tocante a doutrina da salvação, entre outras coisas, que Deus decidiu em sua soberania salvar alguns pecadores, deixando o restante da humanidade pecadora destinada à perdição e tormento eternos: “Ninguém que queira ser considerado homem temente a Deus ousará simplesmente negar a predestinação, pela qual Deus adota a uns para a esperança da vida e destina a outros à morte eterna. […] Chamamos de predestinação ao decreto eterno de Deus pelo qual determinou o que quer fazer de cada um dos homens. Porque Ele não os cria com a mesma condição, mas antes ordena a uns para a vida eterna, e a outros, para a condenação perpétua”. (CALVINO, João. A instituição da religião cristã. Tomo 2 (livros II e IV). Edição integral de 1559. Tradução de Elaine C. Sartorelli e Omayr J. de Moraes Jr. São Paulo: Editora UNESPE, 2009, p. 380).

[10] O monergismo é a doutrina que atribui a conversão do ser humano única e exclusivamente ao Espírito Santo (ANDRADE, Dicionário teológico, ibid., p. 216).

[11] O sinergismo é a doutrina que afirma que o homem tem algum grau de participação na recepção da salvação provida por Deus em Cristo Jesus, e na perspectiva arminiana, tal participação só é possível em resposta a ação inicial da graça preveniente, que liberta o seu livre-arbítrio para as coisas de Deus.

[12] O Arminianismo é o sistema teológico protestante exposto por Jacó Armínio (1560-1609) e os seus seguidores, que enfatiza no tocante a doutrina da salvação, entre outras coisas, que Deus decidiu salvar de antemão e soberanamente “em Cristo”, aqueles pecadores que nEle creriam, enquanto os demais, que não creriam nEle e assim não seriam achados “em Cristo”, permaneceriam reprovados, debaixo da condenação e destinados à morte eterna: “Essa predestinação é o decreto do prazer de Deus, em Cristo, pelo qual Ele decidiu, desde toda a eternidade, justificar os fiéis, adotando-os e dotando-os com vida eterna, “para louvor e glória da sua graça” e, até mesmo, para declaração da sua justiça. […] Todavia, colocamos a Cristo como a fundação dessa predestinação, e como causa meritória daquelas bênçãos que foram destinadas aos fiéis por esse decreto. […] Como oposta à eleição, portanto, definimos a reprovação como sendo o decreto da ira de Deus ou da sua vontade severa, pelo qual, desde toda a eternidade, Ele decidiu condenar à perdição eterna todos os infiéis e as pessoas impenitentes, para a declaração do seu poder e da sua ira; mesmo assim, os incrédulos são visitados por essa punição, não apenas devido à incredulidade, mas também devido aos seus outros pecados, dos quais poderiam ter sido libertados através da fé em Cristo. […] Mas esse decreto que descrevo aqui não é aquele pelo qual Deus decide salvar algumas pessoas e, para que possa fazer isso, decide dotá-las de fé, mas condenar outras, e não dotá-las de fé.” (ARMÍNIO, Jacó. A obras de Armínio. V. 2. Tradução de Degmar Ribas. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 92,93, 404).

[13] ANDRADE, Claudionor Corrêa. Dicionário teológico. Edição revista e ampliada.  Rio de Janeiro: CPAD, 1998, p. 52.

[14] GONÇALVES, José. Os ataques contra a igreja de Cristo: as sutilezas de Satanás nestes dias que antecedem a volta de Jesus Cristo. Rio de Janeiro: CPAD, 2022, p. 23.

[15] OLSON, Lawrence. A eleição. In: Lições Bíblicas: 2° Trimestre de 1974 – Coleção Lições Bíblicas. Rio de Janeiro: CPAD, 2013, p. 775.

[16] ALVES, Eduardo Leandro. A sociedade brasileira e o pentecostalismo clássico: razões socioculturais entre a teologia pentecostal e a religiosidade brasileira. Rio de Janeiro: CPAD, 2021, p. 86.

[17] GONÇALVES, ibid., p. 29.

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