A discussão sobre as crenças pessoais de Brooke Foss Westcott e Fenton John Anthony Hort nunca deve ser feita com leviandade. Entretanto, quando se examinam suas próprias cartas, diários e anotações, torna-se evidente que ambos sustentavam posições profundamente afastadas da ortodoxia cristã histórica. O objetivo aqui não é atacar suas pessoas, mas demonstrar, com citações literais, que suas convicções teológicas influenciaram seu método e concluíram por moldar o texto crítico que produziram em 1881, o qual hoje serve de base para praticamente todas as edições modernas.

O ponto inicial é sua doutrina da Escritura. Hort rejeitava explicitamente a inspiração verbal e plenária, considerando-a quase uma superstição. Em carta escrita a John Ellerton em 1860, ele afirmou: “I am inclined to think that such a theory of Inspiration is a dangerous heresy” [“Sou inclinado a pensar que tal teoria de inspiração é uma heresia perigosa”]¹. Em outra correspondência, Hort declarou que a ideia de infalibilidade bíblica era “a false notion” [“uma noção falsa”]². Westcott não expressava termos tão duros, mas compartilhava a mesma visão crítica sobre a confiabilidade absoluta da Escritura em seus detalhes históricos. Em carta de 1860 a seu amigo, Westcott escreveu: “No one now, I suppose, holds the old doctrine of verbal inspiration” [“Ninguém hoje, imagino, sustenta a antiga doutrina da inspiração verbal”]³. Assim, ambos rejeitavam a doutrina sustentada por Cristo (Jo 17.17), pelos apóstolos (2Tm 3.16) e por toda a tradição protestante.

A visão deles sobre a morte de Cristo também revela clara heterodoxia. Hort considerava a doutrina reformada da substituição penal não apenas errada, mas ofensiva. Em carta de 1871, ele afirmou: “I entirely reject the notion of penal substitution… it seems to me immoral” [“Eu rejeito completamente a noção de substituição penal… parece-me imoral”]⁴. Westcott igualmente via a expiação não como um ato forense objetivo, mas como um processo místico de união espiritual. Esse afastamento da doutrina bíblica — “o castigo que nos traz a paz estava sobre ele” (Is 53.5, ACF) — coloca ambos fora dos limites do ensino apostólico.

Outro ponto controverso diz respeito à escatologia e ao estado final. Em carta de 1851, Hort confessou simpatia pela ideia do purgatório: “The idea of purgation for the sake of purification commends itself to me greatly” [“A ideia de purgação para fins de purificação me agrada grandemente”]⁵. Ele também demonstrou rejeição ao inferno eterno conforme ensinado por Cristo. Westcott, por sua vez, escreveu em seu diário, em 1865: “I reject the literal interpretation of Hell” [“Rejeito a interpretação literal do inferno”]⁶. Essa postura os aproxima da teologia liberal emergente e do universalismo, e não da fé cristã histórica.

Há ainda as inclinações espiritualistas de Westcott. Ele e Hort participaram ativamente da Ghostly Guild, sociedade dedicada à investigação de fenômenos psíquicos e comunicação com espíritos, precursora da Society for Psychical Research. Westcott declara em sua carta de 1851 que as reuniões buscavam a “investigation of ghosts and all supernatural appearances and effects.” [“investigação de fantasmas e de todas as aparições e efeitos sobrenaturais”]⁷ — prática totalmente repudiada pela Escritura (Dt 18.10–12).

A simpatia de ambos por doutrinas romanas também é documentada. Em carta de 1864, Hort afirmou: “The Marian idea has always been to me most delightful” [“A ideia mariana sempre me foi muito agradável”]⁸. Westcott igualmente registrou apreço por representações de Maria que seriam rejeitadas pelo protestantismo clássico. Seu capítulo sobre mariologia em The Gospel of the Resurrection mostra um tom elevado em relação à figura de Maria, muito além da simples honra bíblica.

No campo da criação, ambos adotavam a leitura evolucionista, não apenas como hipótese científica, mas como chave hermenêutica da teologia. Hort escreveu em 1860: “But the book which has most engaged me is Darwin… it is unanswerable” [“Mas o livro que mais me ocupou é Darwin… ele é irrespondível”]⁹. Westcott, da mesma maneira, abraçou o evolucionismo como narrativa legítima da origem humana, o que o levou a abandonar a historicidade literal de Gênesis 1–3.

Todos esses elementos — baixa doutrina da Escritura, rejeição da substituição penal, simpatia pelo purgatório, rejeição do inferno, tendências espiritualistas, mariologia suavizada e evolucionismo teológico — não são detalhes secundários, mas convicções que moldaram o ambiente mental no qual elaboraram seu método textual. Isso explica por que Hort chamou o Texto Recebido de “vile and corrupt” [“vil e corrompido”]¹⁰, embora nunca tenha fornecido provas equivalentes à sua severidade verbal. A ideia de que o texto preservado pela igreja seria tão profundamente corrompido reflete sua visão de uma providência limitada e sua aproximação com o racionalismo crítico.

A igreja, entretanto, afirma que Deus, ao inspirar o salmista, registrou: “engrandeceste a tua palavra acima de todo o teu nome” (Sl 138.2, ACF), e ainda: “nem um jota ou um til se omitirá da lei” (Mt 5.18, ACF). O espírito com que Westcott e Hort trataram o texto bíblico estava em dissonância com essa confiança apostólica. Suas crenças pessoais não apenas revelam uma teologia heterodoxa, mas ajudam a explicar a construção de um texto crítico que nasceu de pressupostos que não refletem a fé evangélica histórica.

Referências das citações

  1. Hort, Life and Letters of Fenton John Anthony Hort, vol. 1, p. 420.
  2. Ibid., p. 422.
  3. Westcott, Life and Letters of Brooke Foss Westcott, vol. 1, p. 207.
  4. Hort, Life and Letters, vol. 1, p. 430.
  5. Ibid., vol. 1, p. 81.
  6. Westcott, Life and Letters, vol. 2, p. 351.
  7. Westcott, Life and Letters, vol. 1, p. 117.
  8. Hort, Life and Letters, vol. 2, p. 49.
  9. Hort, Life and Letters, vol. 1, p. 416.
  10. Hort, carta a John Ellerton, em Life and Letters, vol. 1, p. 211.

Bibliografia comentada

Hort, F. J. A., Life and Letters. Obra essencial para compreender sua mente e teologia. Contém quase todas as citações usadas acima.

Westcott, B. F., Life and Letters. Tão reveladora quanto a de Hort. Mostra seu envolvimento espiritualista, sua visão de Escritura e inclinações teológicas.

Burgon, John William, The Revision Revised. Crítica clássica ao método de Westcott e Hort. Excelente para entender o impacto teológico da revisão de 1881.

Miller, Edward, A Guide to the Textual Criticism of the New Testament. Complemento importante à crítica de Burgon, com documentação histórica.

Scrivener, F. H. A., A Plain Introduction to the Criticism of the New Testament. Contra-balança equilibrada ao método de WH, escrito por um crítico textual confessional.

Rui Alexandre Dias,

Pastor da IBBV São Carlos, SP.

Fonte: www.textotradicional.org

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